Obstáculos que impedem a efetivação do lazer como direito fundamental social

Turismo e Hotelaria

18/09/2015

O lazer, dito como aqueles momentos em que o homem abstrai seu pensamento e seu físico das obrigações cotidianas, sempre permeou as relações da vida humana. Desde a Pré-História, o conceito de lazer esteve diretamente ligado aos cultos religiosos, caçadas, lutas, atividades artísticas, festas e comemorações. Contudo, assim como outros aspectos da sociedade, o lazer sofreu ressignificações ao longo do tempo, ora menos, ora mais valorizado e estudado por pensadores de diversas épocas da História. O “ócio”, o “não trabalho” – leia-se lazer – foi motivo de preocupação para uma série de personalidades da Filosofia mundial. Com o advento da Revolução Industrial e o consequente domínio do modo de produção capitalista, o lazer passou a ser tratado como direito do trabalhador, sendo reivindicado pelas entidades de classe a partir de então.

Neste sentido, o lazer foi introduzido legalmente na vida humana para servir de contraponto ao modelo de gestão governamental instaurado, desde a Revolução Industrial até o momento contemporâneo. No artigo 6° da Constituição Federal do Brasil, temos que “são direitos sociais a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer [...]”. Contudo, somente a ideia de proclamar o direito do cidadão ao lazer não garante a efetivação do mesmo na vida deste. Existem obstáculos que impedem a realização de atividades relacionadas ao lazer. Mesmo com esta proclamação dos preceitos dos direitos fundamentais, a Carta Magna brasileira não explicita de que maneira este direito deve ser garantido e realizado de fato. Não existe um sentido pragmático no texto que garante o direito ao lazer, somente a teoria de que este direito deve ser efetivado pelo Estado.

Os obstáculos observados no desenvolvimento do lazer podem se referir a fatores socioambientais – dificuldades econômicas; diferença entre classes; aumento da violência e da criminalidade; diminuição dos espaços destinados ao lazer; regionalismo; falta de relacionamentos interpessoais; falta de tempo livre; desconhecimento das oportunidades de lazer – e pessoais – gênero; idade do praticante; falta de predisposição. No contexto atual de globalização e universalização dos modos de consumo do lazer, é possível afirmar que estes obstáculos são encontrados em diversos destinos e espaços destinados a este fim. Contudo, dependendo das peculiaridades de cada local destinado ao lazer, tanto no que diz respeito aos fatores socioambientais quanto pessoais, alguns dos obstáculos supracitados podem ser mais evidentes que outros, ou mesmo inexistirem em alguns lugares. Neste sentido, com o objetivo de identificar os possíveis obstáculos para o desenvolvimento do lazer, é aconselhável estudos de viabilidade dos empreendimentos destinados a este fim, levando em consideração a cultura do local e do povo que nele vive.

Resido, atualmente, na cidade de Torres, no Rio Grande do Sul, a qual possui um Turismo razoavelmente organizado, pois possui belas paisagens que são exploradas para o desenvolvimento da atividade turística na região. Além disso, Torres/RS é uma cidade litorânea, o que, por si só, já constitui argumento para a movimentação de turistas. Em consulta ao Plano Diretor do Município – Lei Municipal 2.902/95 –, pode-se perceber algumas referências textuais ao lazer, mesmo que implicitamente. No artigo 9°, por exemplo, temos que “o Município promoverá a melhoria da qualidade de vida [...]”, o que pode ser interpretado como a oferta de oportunidades de lazer, além de outros direitos, como forma de incremento da vida cotidiana do cidadão.

Para fins de contextualização e elucidação do presente texto, far-se-á uso dos conceitos de lazer e turismo paralelamente. Contudo, não se deve confundir estas duas áreas, pois uma pode ocorrer sem a influência da outra, e vice-versa.

Como a maioria dos destinos turísticos localizados e/ou estruturados sobre áreas ambientalmente protegidas, Torres/RS secciona as suas áreas em “zonas”, ordenadas conforme características geográficas e de uso do solo. O artigo 28° do Plano Diretor denomina como “Áreas de Interesse Paisagístico, Histórico-Cultural e Turístico”: 1) as áreas de lazer, recreação e turismo; 2) as paisagens notáveis; e, 3) os locais destinados à preservação da História de Torres. Ou seja, a cidade e os governantes que redigiram e implantaram esta lei preocuparam-se com a destinação de lugares específicos ao lazer. Penso que esta inclinação deve-se pela presença de uma cultura de movimentação turística já instaurada desde os primórdios de Torres/RS.

O desenvolvimento do turismo em um local deve contemplar as necessidades e desejos dos turistas, mas os impactos sentidos pelos autóctones – sejam bons ou ruins – devem sempre permear as discussões de implantação de atividades turísticas de uma determinada região. No caso de Torres/RS, a destinação de locais e espaços específicos ao lazer contribui para uma melhor estruturação dos serviços turísticos oferecidos pela cidade, bem como oferece um legado à população residente, que poderia sofrer com a escassez de serviços fora de um período de alta temporada.

Portanto, na cidade de Torres/RS é possível observar uma infraestrutura um tanto além da básica. Isso se deve pelo fato de o Turismo ser uma das atividades que mais contribuem economicamente para o desenvolvimento do município. Ainda assim, é possível perceber determinadas mazelas nos diversos setores que compõem o modal turístico de Torres/RS. Dentre os obstáculos ao desenvolvimento de ações de lazer citados anteriormente, nos espaços destinados ao lazer e ao Turismo explicitados no Plano Diretor de Torres/RS, o fator que mais significativamente contribui para a diminuição destas ações no município é o aumento da violência e da criminalidade. Recentes registros de assaltos e ataque a mulheres na orla fazem com que os usuários dos locais destinados ao lazer reduzam a frequência no uso destes espaços, ou mesmo procurem outra maneira de acesso ao lazer.

A situação exposta acima poderia ser utilizada como exemplo do uso dos conceitos de “reserva do possível” e de “proibição ao retrocesso”. O Estado deveria promover integralmente a garantia dos direitos fundamentais sociais envolvidos em questão – no caso, a segurança e o lazer. Contudo, recorrendo aos argumentos que sustentam a tese da “reserva do possível”, o Estado investe o mínimo necessário – “mínimo existencial” – em segurança, implicando na violação do direito ao lazer, comprometido pela ausência do primeiro direito fundamental: a própria segurança. Neste sentido, o uso da “reserva do possível” atentou contra o princípio da “proibição ao retrocesso”, já que tolheu do cidadão um direito fundamental anteriormente adquirido: o lazer.

A questão do “mínimo existencial” palpita entre os conceitos da “reserva do possível” e da “proibição ao retrocesso”, pois oferece o básico para o suprimento das necessidades humanas, porém não o suficiente para o desenvolvimento e progresso da sociedade. Como explícito no texto “Direitos Sociais frente ao princípio da proibição ao retrocesso social” (CEZAR), este princípio “não pretende tornar a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais imutáveis, mas assegurar os direitos já conquistados”. Porém, se a ideia de progresso social é aquela considerada o âmago do princípio da “proibição ao retrocesso”, os próprios direitos constitucionais são passíveis de avanços e reinterpretações, à luz das necessidades contemporâneas. Algumas teses sobre teoria do conhecimento e cientificidade afirmam que um conhecimento está posto até que seja superado, ou seja, só vale enquanto não surgir outro que reinterprete os dados e avance nos resultados. Sendo assim, retornando ao exemplo da segurança e do lazer, as necessidades sociais sofreram transformações que sugerem não ser mais somente a “reserva do possível” suficiente para efetivar todos os direitos fundamentais sociais constitucionalmente garantidos ao cidadão.

No vídeo intitulado “Obstáculos econômicos è efetivação dos direitos fundamentais sociais” (DUARTE), o autor da tese diz que “reconhecida a insuficiência dos meios jurisdicionais de realização dos direitos fundamentais, é preciso que a sociedade se organize e pressione em prol da efetivação destes direitos”. Mas, deve-se prestar atenção ao fato da priorização dos direitos fundamentais pela população. Em se tratando do “mínimo existencial”, situação que pode – se não completamente, pelo menos, em parte – ser observada na atual conjuntura do Brasil e dos Estados que compõem o país, o povo clamará por direitos que signifiquem o mínimo de dignidade humana na vida das pessoas, como saúde, alimentação, trabalho e moradia. O lazer, em momentos de uso da “reserva do possível”, fica renegado à mera possibilidade, não constituindo elemento-chave na qualidade de vida do cidadão. Aliás, seria possível falar em “mínimo existencial” no que diz respeito a outros direitos fundamentais sociais que não o direito à saúde e alimentação, elementos vitais ao ser humano? Sendo o lazer um direito fundamental garantido pela Constituição, estaria ele – o lazer – subjetivamente pautado como “mínimo existencial”, onerando o Estado tanto quanto o direito à saúde e alimentação?

Quando uma decisão judicial é tomada a fim de efetivar o acesso a um determinado direito fundamental social – como no caso do fornecimento de remédios pelo Estado, por exemplo –, o juiz deve ter ciência de que o montante de verbas destinado ao caso em questão não provém de nenhum fundo monetário extra dos cofres públicos. Os recursos serão simplesmente realocados, ou seja, retirados de algum setor da sociedade – que talvez também garanta algum direito fundamental ao cidadão – e introduzidos em outro. A arrecadação pública de um país, Estado ou município é uma só, e deve dar conta das provisões de todos os direitos fundamentais sociais garantidos pela Constituição Federal.

Portanto, o lazer, ou o oferecimento deste, tem valor constitucional equivalente à saúde, alimentação, trabalho, moradia, etc. Sob a égide da Carta Magna do Brasil, o lazer deve ser tratado como elemento – direito – fundamental para o desenvolvimento pleno do ser humano, proporcionando o caráter de liberdade, desinteresse, hedonismo e subjetividade inerentes a este direito. Justamente por contrapor o modelo capitalista de evolução social, o lazer se utiliza destas quatro propriedades:

  • liberdade: a opção de escolha faz do lazer algo espontâneo, não condicionado às regras ou procedimentos formais;
  • desinteresse: o lazer não deve ter fins materiais e/ou sociais;
  • hedonismo: o prazer é o que rege as escolhas, e não a necessidade;
  • subjetividade: o lazer é e sempre será uma escolha pessoal.

Mesmo ciente dos obstáculos que impedem ou condicionam o desenvolvimento de ações de lazer, bem como a situação contemporânea de uso da “reserva do possível” e do oferecimento do “mínimo existencial” por parte do governo, não me permito aqui desdizer o lazer como direito fundamental, em função de garantir os outros direitos. A “interdisciplinarização” do lazer com os demais direitos fundamentais sociais garantidos pelo Estado se faz necessária. E este deve ser refletido à luz de diversos setores da sociedade, como Economia, Saúde, Emprego e Renda, Habitação, se quisermos que o Estado seja capaz de assegurar ao cidadão – a nós! – todos os “direitos a que temos direito”. Uma visão holística do lazer pode lhe conferir a importância que merece, uma vez que estudos já comprovaram que determinadas atividades de lazer contribuem para o desenvolvimento físico, intelectual, cultural e social do indivíduo. Neste sentido, o lazer poderia, inclusive, servir de pressuposto para a “proibição ao retrocesso”, alertando as autoridades governantes para os benefícios do lazer – liberdade, desinteresse, hedonismo e subjetividade – para o progresso da sociedade e melhora da qualidade de vida das pessoas. Assim, poder-se-ia, quem sabe, observar o oferecimento de mais do que o “mínimo existencial”, mas sim daquilo a que o cidadão efetivamente tem direito.

 

REFERÊNCIAS

 

FIGUEIREDO, Luiz Guilherme Buchman. Turismo de esportes e aventura: livro didático. 4. ed. Palhoça, SC: UnisulVirtual, 2011.

 

CEZAR, Renata. Direitos sociais frente ao princípio da proibição ao retrocesso social. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/6963/Direitos-sociais-frente-ao-Principio-da-Proibicao-do-Retrocesso-Social>. Acesso em: 26 ago. 2015.

 

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 ago. 2015.

 

MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do lazer: uma introdução. 4. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. (Coleção educação física e esportes). Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=IhsuU-xs9G0C&pg=PA3&lpg=PA3&dq=introdu%C3%A7%C3%A3o+aos+estudos+do+lazer&source=bl&ots=2yAtfQJtda&sig=0U_AYPJeTcbnyKaZXPWol5uc6W8&hl=pt-BR&sa=X&ei=iUMuUaDqMYak9ASakoAo>. Acesso em: 26 ago. 2015.

 

DUARTE, Leonardo de Farias. Obstáculos econômicos à efetivação dos direitos fundamentais sociais (vídeo da internet). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tIr6mrYLqLc>. Acesso em: 26 ago. 2015.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Juliano Lanius

por Juliano Lanius

Acadêmico de Turismo da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), atua há 10 anos no setor de Alimentos e Bebidas, especificamente bares e restaurantes. Foi relator da I Conferência Regional de Turismo da Região Central/RS e aluno-bolsista do "Projeto Educação para o Turismo", em Santa Maria/RS. Escreve sobre Turismo e A&B, além de crônicas sobre assuntos diversos.

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