VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INFÂNCIA

Psicologia

06/11/2014

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INFÂNCIA 

JENNIFER PAIXÃO JUSTO CARNERO

 

Monografia apresentada ao Departamento de Psicologia do Instituto Brasileiro de Medicina e Reabilitação – Centro Universitário Hermínio da Silveira – UNI IBMR como requisito parcial à obtenção do Título de Psicóloga.

Orientadora: Profª. Raquel Staerke Calvano & Co-orientadora: Profª. Leila Maria Amaral Ribeiro.

 

INTRODUÇÃO

Os motivos que me fizeram ter interesse por esse projeto, partiram da experiência com crianças em situação de violência doméstica no Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro - SPIA/IPUB/UFRJ no Programa Situações de Violência na Infância, desde final de 2006 de Psicologia. A partir daí surgiu a necessidade de aprofundamento no tema. Para o presente trabalho foi pesquisada a evolução histórica da violência doméstica e infância, suas consequências, bem como o papel do profissional de saúde, em destaque, o do psicólogo.

Notícias sobre assassinatos, maus-tratos e abuso sexual, veiculadas diariamente pela mídia, provocam horror e despertam questionamentos. A violência tem se mostrado muito presente nos dias atuais e o que mais chama a atenção é a violência que acomete crianças na esfera privada. No entanto, isso não aponta necessariamente que a violência tenha aumentado, mas que já não se trata mais de um problema estritamente familiar e, sim, de um problema social. Nesse sentido, a violência intrafamiliar vem sendo tratada como uma questão de saúde pública, pois representa uma das principais causas de mortalidade, especialmente entre a população jovem (MINAYO, 2006a:14). Por ser um fenômeno ainda pouco estudado, é difícil conhecer as causas que antecedem a violência e os efeitos que esta terá na vida do indivíduo. Alguns autores afirmam que a violência ocorre de diversas maneiras, mas esta necessita ser analisada em seu contexto cultural e histórico.

Essa monografia tratará do tema Violência Doméstica e Infância, tendo como objetivo caracterizar a violência, suas formas de expressão e contextualizar o que leva pais a maltratar ou abusar dos próprios filhos. Um segundo questionamento será feito sobre os fatores que legitimam a violência na infância, prática tão presente, mas com raízes antigas não apenas na história do Brasil como em toda a história da humanidade.

Esse trabalho organiza-se em temas divididos por capítulos na seguinte ordem: o capítulo 1 descreve os conceitos, a caracterização da violência e busca definições para o tema do qual tratamos; o capítulo 2 faz um percurso no contexto histórico e cultural da violência e da infância, contextualiza a antiguidade com a atualidade, o que mudou sob o ponto de vista legal para a criança. Dando sequência ao conteúdo, o capítulo 3 enfatiza duas formas de violência doméstica, o abuso sexual e a violência física, bem como o papel do psicólogo e dos profissionais da saúde; o capítulo 4 discute os aspectos sobre a legitimidade da violência que envolve crianças, os fatores que ainda contribuem para este acontecimento e quais as justificativas usadas por gerações para a banalização do fenômeno. Ao final, teremos as considerações conclusivas deste trabalho e o conteúdo bibliográfico.

 

1. CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 

1.1 – Definições gerais sobre a violência doméstica na infância

A violência tem se mostrado muito presente, segundo o que indicam os estudos feitos pela Unicef. No mundo 500 mil crianças são vítimas de violência no decorrer do ano. No Brasil, anualmente milhares de crianças e adolescentes são espancados (apud Ribeiro, 2002:1).

A violência é um fenômeno real, colocado em um plano pouco visível em muitos momentos da história, mas que, em tempos recentes, passou a ser o foco de muitas discussões. Por ser uma questão complexa e multicausal, requer análises e estudos mais aprofundados que abarquem todos seus aspectos. Problemas sociais como miséria, desemprego, falta de políticas ou segurança públicas contribuem para aumentar e recrudescer as manifestações de violência em que estes aspectos, em conjunto ou isoladamente, se fizerem presentes (Ribeiro, 2002:1).

Chauí (1985) entende a violência:

(...) como conversão de uma diferença e de uma assimetria, numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão (...), como a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio" (Chauí, 1985:61-62).

Originalmente a palavra violência surge no “latim violentia, ato de violentar, constrangimento físico ou moral, ao qual pode se acrescentar a coação ou coerção psicológica” (Levisky, 1997, p. 24).

Ainda, em Adorno (1988 apud Guerra, 2001): “a violência é uma forma de relação social (...) é a negação de valores considerados universais: a liberdade, a igualdade, a vida (...) é uma permanente ameaça à vida pela constante alusão à morte, ao fim, à supressão, à anulação” (p.31).

A violência na infância não é uma realidade recente no Brasil, muito menos nos países do Primeiro Mundo. Sobre isso, Trindade afirma que:

A sociedade freqüentemente conclama para a proteção de nossas crianças e o fortalecimento da saúde familiar. Ao mesmo tempo, milhares de crianças experimentam a violência de maneira regular e suas vidas são irremediavelmente alteradas. Para essas crianças, os locais de violência não são a guerra da periferia das cidades ou o crime que domina as ruas, mas dentro das suas próprias casas” (Trindade, 1998:1).

Estudos da AMENCAR (1999) sinalizam que 80% das denuncias, referente à violência, aconteceram no espaço privado da família, sendo os pais biológicos e/ou adotivos, os principais responsáveis pela agressão.

Chauí (1999) define o espaço privado como um acordo feito entre os seres humanos, um lugar à parte da sociedade; a família era algo sagrado e inviolado. Este acordo é respeitado, e mostra o efeito que os fatores culturais têm sobre as relações sociais (p. 409).

Segundo Vittiello,

O conceito do lar e da família como refúgios são intocáveis, onde cada ser humano consegue proteção contra o mundo exterior, adverso e hostil, é algo que nos é muito grato cultivar. De alguns anos para cá, entretanto, o véu vem sendo levantado (...). E o que tem sido constatado é estarrecedor, não apenas na freqüência de tais práticas, mas também, em termos das conseqüências biopsicossociais. Descortinamos, além disso, cenas de extrema violência no relacionamento intrafamiliar, que vem demonstrando não ser tão doce como se queria crer o nosso “lar, doce lar” (Vittiello, 2000:123).

Não existem princípios, leis ou fronteiras para esse tipo de violência. A ocorrência é recorrente, instituindo-se como prática, apesar da existência das constituições de proteção aos direitos humanos. Reconhecemos que a dificuldade principal está na condição de segredo que permeia o âmbito familiar. Para Nitschke (1999) "falar em família é mergulhar em águas de diferentes e variados significados para as pessoas, dependendo do local onde vivem, de sua cultura e, também, de sua orientação religiosa e filosófica, entre outros aspectos" (p.41). A referida autora segue:

Família é uma unidade, um mundo construído, próprio daqueles que a constituem, mundo este que integra partes... e não se restringe, pois se relaciona a tudo onde está inserido. Esse tudo, ao mesmo tempo, também se apresenta como parte do próprio mundo que é a família. Como ela é complicada, ela é ao mesmo tempo descomplicada. A família tem momentos de divergências, conflitos, podendo ter problemas. A família tanto educa como se educa, desenvolvendo através desta educação padrões dentro dos quais seus membros vivem... Os membros da família respondem por ela... é importante que os membros da família se conheçam entre si e a si próprios. A família é algo para que se vive e onde se vive, pressupõe a existência de respeito. A família tem elos que não se limitam aos de sangue (NITSCHKE 1999:98).

Portanto, torna-se necessário um olhar crítico sobre os espaços familiares e um rompimento com as ideologias de lugar seguro e intocável para que a realidade dos atos violentos ocorridos no contexto familiar não permaneça no silêncio. Portanto, entende-se por violência intrafamiliar:

Toda ação ou omissão que prejudique o bem estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida dentro e fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui também as pessoas que estão exercendo a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue (MINISTÉRIO DE SAÚDE, 2001).

A violência doméstica, segundo Azevedo e Guerra (1995), pode ser definida como sendo:

(...) todo ato ou omissão, praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que, sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima, implica numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, por outro lado, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (AZEVEDO E GUERRA, 1995:26).

O termo “doméstico” no âmbito da violência doméstica ultrapassa os limites das paredes do lar e inclui pessoas que convivem no ambiente familiar, como: empregados, agregados e visitantes esporádicos (UNICEF, 2000), a ocorrência pode ser também na rua onde mora, na casa de vizinhos, etc.

A violência familiar, na concepção de Minayo (1993, p. 58) é uma das principais razões pelas quais crianças e adolescentes deixam as suas casas e passam a viver nas ruas. Isso, de certa forma, pode explicar situações em que esses sujeitos vivam não só um espaço de exclusão social como também o abandono familiar físico ou simbólico.


2. CONTEXTOS HISTORICOS E CULTURAIS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

"(...) aqueles que ignoram o passado, são condenados a repeti-lo.”

(George Santayana)

 

2.1 – DA ANTIGUIDADE À ATUALIDADE

A violência que envolve crianças não é fato recente na humanidade, quanto mais regressamos na história, mais nos deparamos com a falta de proteção e leis especificas que as defendessem. Para Minayo (2006a, p. 15) “nunca existiu uma sociedade sem violência, mas sempre existiram sociedades mais violentas que outras cada uma com sua história”.

Lima (1983 apud Day 2003:11) relata que no Antigo Oriente, o sexto rei da dinastia de Babel ordenou que escrevessem 21 colunas, com 282 cláusulas que ficaram conhecidas como Código de Hamurábi (1728/1686 ac.); em um dos artigos (192), o filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram seus pais biológicos teria sua língua cortada e afastados dos pais adotados (art.193). Uma punição severa era aplicada ao filho que batesse no pai, segundo esse mesmo código (art.195), a mão do filho era decepada, por ter sido considerado o órgão agressor. Esse mesmo autor nos mostra que em Roma, nos anos 303 e 304, era permitido ao pai matar o filho que nascesse com alguma deformidade.

Crueldades cometidas contra crianças pequenas fazem parte da história da humanidade, sem falar do direito de vida ou de morte dado ao pai sobre seus filhos. Somente em meados do século XIX começa a se esboçar uma preocupação com a criança, que passa a ser encarada como uma pessoa em formação (Delgado & Fisberg, 1990:112).

Philippe Ariès faz um panorama de como a criança era vista pela sociedade medieval, e mostra o descaso e a falta de cuidados com a infância, que naquela época era ignorada e negligenciada. Levou algum tempo para o surgimento do sentimento da infância, dando um novo lugar a essa criança na família e na sociedade.

Na Idade Média esse sentimento da infância não existia, a criança era considerada um adulto em miniatura e executava as mesmas atividades dos mais velhos. Quando a criança não precisava mais do apoio constante da mãe ou da ama, era entregue à própria sorte. Não se dispensava um tratamento especial para esses pequenos, que a partir dos cinco anos já ingressavam no mundo dos adultos sem absolutamente nenhuma transição, participavam de reuniões, festas e orgias. Antes dos 9 anos já realizavam trabalhos pesados e cansativos. A sobrevivência dessas crianças era muito difícil, devido a negligencia e ao abandono. A morte de crianças era encarada com naturalidade e o infanticídio era praticado, mesmo sendo um ato proibido, como descreve Ariès:

O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las... O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tampouco era considerado como vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras, condenadas pela ética da Igreja e do Estado, mas praticadas em segredo, numa semiconsciência, no limite da vontade do esquecimento e da falta de jeito (Ariès, 1986:17).

Segundo Donoso (2006, p.18), Russel (1981) relata que nessa mesma época, não era incomum encontrar nas ruas bebês abandonados por seus pais. Muitas vezes eram devorados por animais, ou morriam pelo mau tempo ou pela inanição. No entanto, a partir do século XVIII, há uma mobilização da opinião pública, indignada com o grande número de bebês abandonados.

Na metade do século XIX, ocorreu um movimento de mudança no nível dos costumes, coincidindo com a polarização social em torno da família, como descreve Ariès (1986, p. 11): “a família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos.”, Passou-se a associar os conceitos de infância aos de inocência e fragilidade, contrariando-se alguns pensadores religiosos. Começou a surgir em alguns membros da sociedade o interesse de entender e conceituar os maus-tratos.

Badinter (1985, p.68) descreveu como primeira rejeição ao filho a recusa da mãe em amamentá-lo. Em seus estudos verificou-se que entregar a criança à uma ama-de-leite era comum na França urbana do século XVII.  O abandono dos bebês foi considerado normal e totalmente aceitável por essa sociedade. Logo após o nascimento, a maioria das crianças era enviada ao campo aos cuidados de amas-de-leite, onde permaneciam até o desmame. O retorno dessas crianças só ocorria após três ou quatro anos, sem nenhum afeto, e tão somente quando conseguiam sobreviver aos cuidados extremamente precários que lhes eram oferecidos. Isso ocorria em todas as classes sociais como prática comum. Quando a criança não era encaminhada, logo após o nascimento, a ama contratada se mudava para a casa da família, sendo obrigada a deixar seu próprio filho com alguma outra ama para alimentá-lo. A mãe com melhor condição econômica escolhia amas fortes e saudáveis, o que não era possível para outras mulheres, que deixavam seus filhos com “amas fracas e miseráveis”. A morte de crianças com menos de 1 ano de idade era banalizada, considerada coisa normal nos séculos XVII e XVIII (Ibidem, p.137).

Na Inglaterra, em 1780, "as crianças podiam ser condenadas por qualquer um dos duzentos crimes cuja pena era o enforcamento" (Postman, 1999 apud Day, 2003:11). Entre 1730 e 1779, metade das pessoas que morreram em Londres tinha menos de cinco anos de idade. Isso nos leva a pensar no pacto social que havia em relação à criança. As leis eram feitas para punir de maneira inexorável, já que é inviável imaginar tão absurda quantidade de crimes possíveis para uma criança abaixo de 5 anos. Podemos observar que havia um sistema pronto para que a autoridade pudesse arbitrar sobre a vida das pessoas, inclusive de crianças. Estas seriam as sobreviventes da cultura, se chegassem à vida adulta. Desta maneira perpetuavam-se os costumes (Ibidem).

No Brasil, anterior ao seu descobrimento oficial no século XVI, a situação da criança não foi diferente. As primeiras embarcações rumo às Terras de Santa Cruz que Portugal lançou ao mar, segundo contam os historiadores, foram povoadas com crianças que subiam a bordo na condição de grumetes, pagens ou como órfãs do rei, enviadas para casarem com os súditos da Coroa. Havia pouquíssimas crianças como passageiras na companhia dos pais ou parentes próximos. Dificilmente mulheres vinham nas embarcações e as crianças, frequentemente, recebiam a incumbência de prestar serviços na viagem longa e trabalhosa, sendo "obrigadas a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos" (Ramos, 1999, p.19).

Os atos de sodomia nas embarcações eram aceitos pela Inquisição, e mesmo as crianças que viajavam acompanhadas dos seus pais eram abusadas. As órfãs do rei tinham que ser guardadas e cuidadosamente vigiadas para manterem-se virgens até chegar à Colônia, a fim de se casarem. Quando o estupro acontecia, calavam-se por vergonha e medo de serem rejeitadas por seus futuros maridos. A pedofilia era prática corriqueira, segundo relato de alguns viajantes estrangeiros que passaram por Portugal no século XVIII.

Quando os grumetes eram estuprados por marinheiros, quer por medo ou vergonha, dificilmente queixavam-se aos oficiais, até porque muitas vezes eram os próprios oficiais que haviam praticado a violência. Assim, relatos deste tipo são praticamente inexistentes. No entanto, por ser a pratica corrente na Idade Média, tudo leva a crer que a violência sexual era comum nos navios (Ramos, 1999:27).

Quando as embarcações eram atacadas por piratas, os adultos eram mortos e as crianças eram escravizadas, “sendo prostituídas e exauridas até a morte” (Ibidem, p.20).

Os grumetes tinham entre 9 a 16 anos, às vezes com idades inferiores. Recrutados de famílias pobres ou por serem órfãos desabrigados, eram considerados como pouco mais que animais. Portanto, enquanto durassem suas vidas, deveriam ser ao máximo aproveitadas de suas forças.  Outra forma que usavam para recrutamento desses grumetes era o rapto de crianças judias. Estas eram arrancadas à força dos braços de seus pais e jogadas no navio à revelia, este ato causava muita dor e uma grande perda afetiva. De forma diferente, as crianças de famílias pobres e carentes eram alistadas pelos pais que consideravam isto um bom negócio, uma vez que aumentava a renda familiar e significava uma boca a menos para alimentar. Ignoravam as barbaridades que ocorriam, alistavam essas crianças nas embarcações que eram entregues a um difícil cotidiano, cheio de privações e maus-tratos, sendo obrigadas a abandonar o universo infantil rapidamente (Ibidem, p.22).

Os pagens eram crianças com uma situação um pouco diferente dos grumetes, pois apesar de também correrem risco de estupro, a violência era cometida pelos oficiais e não pelos marujos. Eles recebiam tarefas mais leves e não muito arriscadas, além de terem seus castigos suavizados, sendo raros os castigos severos (ao contrário dos grumetes, que eram chicoteados da mesma forma que os marinheiros quando desobedeciam às ordens dos oficiais). Essas crianças provinham de famílias da baixa nobreza ou eram de famílias protegidas pela nobreza. O ingresso a essas embarcações era visto como uma ascensão social eficaz, com a promessa de conseguir uma carreira na vida marítima (Ibidem, p.30).

As órfãs do rei eram crianças brancas, pobres, que moravam em orfanatos, e eram consideradas órfãs, mesmo tendo apenas o pai falecido, época patriarcal, e com essa justificativa, eram retiradas de suas casas. Houve uma suposição de espécie de seqüestro nessa época de meninas pobres abaixo de 16 anos em Portugal. Nas embarcações, essas meninas ficavam a mercê dos marujos e oficiais:

Como o estupro de meninas pobres, maiores de 14 anos, dificilmente era punido – o que estava bem de acordo com a tradição medieval que só punia o estupro se as vitimas tivessem de 12 a 14 anos – as meninas embarcadas como órfãs poderiam ser violadas por grupos de marinheiros mal intencionados que ficavam dias à espreita em busca dessa oportunidade. Por medo de serem depreciadas no mercado matrimonial para o qual estavam direcionadas, ou por vergonha, terminavam ocultando o fato, de modo que os relatos a respeito são praticamente inexistentes (Ramos, 1999:34)

Em caso de tempestade, comum naquela época, as crianças eram deixadas de lado pelos adultos e lançadas ao mar como opção de primeira carga. Quando sobreviviam ao naufrágio eram entregues à sua própria sorte, e por certo, era difícil a sobrevivência devido às suas fragilidades e a constituições físicas. 

Seguindo no início do século XX, permeava nas relações entre pais e filhos a agressão. Somente neste último século os maus-tratos na infância têm sido vistos como um problema social, mas que só foi constituído a partir da identificação da “síndrome da criança espancada”, que legitimou um problema social específico e autônomo. Na segunda metade do século XIX, foi oficialmente documentado um primeiro caso de maus tratos contra a criança, o da menina Mary Ellen. A criança foi encontrada, por religiosos e assistentes sociais, acorrentada à própria cama e em grave estado de desnutrição e maus-tratos.  Os abusadores eram os pais adotivos da criança, por ser órfã de mãe, abandonada pelo pai. O caso foi denunciado à Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Animais, já que naquela época não havia um local destinado a receber este tipo de denúncia. Foi necessário equiparar a criança a um animal para que seu caso fosse aceito e pudesse ser examinado pelo Tribunal, que interveio prontamente, concluiu-se que a criança pertencia ao reino animal e que, portanto, contava com leis que proibiam a crueldade contra animais. Somente em 1871, foi fundada a Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças (RASCOVSKY, 1981 APUD DANOSO, 2006:19).

Em 1896, de acordo com Masson (1984), Freud descreve sobre a teoria do trauma na infância, onde revela que suas pacientes não fantasiavam os relatos de abusos sexuais, mas que estes relatos eram reais. Segundo este autor, a teoria do trauma infantil teria sido originada destes relatos. Algumas cartas, onde Freud debatia essas evidências com outros psicanalistas, foram encontradas no Museu de Viena por Masson. Dada a negativa repercussão destes achados na apresentação ao Círculo Psicanalítico, Freud teria modificado a teoria do trauma e elaborou a teoria da sedução.

“Quando Freud anunciou suas novas descobertas no discurso de 1896 sobre a etiologia da histeria, não encontrou qualquer refutação fundamentada, qualquer discussão científica, mas apenas repulsa e reprovação. A idéia de violência sexual na família tinha tal carga emocional que a única reação que encontrou foi a aversão irracional. Enfrentando a hostilidade de seus colegas às suas descobertas, Freud sacrificou seu maior insight Quando Ferenczi, uma geração depois, foi levado por seus pacientes a mesma descoberta, encontrou reação semelhante (...). Quando outros quarenta anos depois Robert Fliess instou a comunidade psicanalítica a reexaminar a teoria do trauma sexual na infância, encontrou a reação que, já agora, se tornara comum” (Masson, 1984:79).

Observa-se que o envolvimento sexual com criança era comum na época vitoriana entre pessoas de classe alta. Não era interesse que esse assunto fosse discutido ou revelado. A infância era negligenciada e os abusos deveriam continuar no sigilo do lar.

Percebe-se que a violência é parte significativa do cotidiano como retrata a trajetória humana através dos tempos. Freud (1974:75) afirma que a violência é intrínseca à própria existência de uma civilização.

2.2 - A LEI CONTRA A VIOLÊNCIA NA INFÂNCIA – UM MARCO NA ATUALIDADE

Aqui no Brasil, a violência que envolve crianças, passou a ter maior atenção apenas no final dos anos 80, sendo esse um marco histórico na nossa sociedade, com a implementação de leis em defesa aos direitos da criança e do adolescente. A Constituição Federal (CF), na tentativa de inibição da violência doméstica, se depreende da redação do § 8º do art. 226: "o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Além disso, estabelece o art. 227 que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Costanze, 2006:1).

Segundo Tourinho (2001 apud Donoso 2006), O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – foi criado em 13 de junho de 1990, e tem princípios próprios e fundamentais da nova política estatutária do direito da infância e da juventude, e assegura crianças e adolescentes, como sujeitos de direito. Instituiu-se como Lei Federal n.º 8.069, que obedece ao artigo 227 da Constituição Federal “tendo como pressuposto básico garantir que crianças e adolescentes sejam reconhecidos como pessoas em desenvolvimento, indivíduos com suas próprias necessidades e merecedores de proteção integral, preconizando que não serão objetos de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Ibidem, p.32)

No art.13, a lei tornou obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados de abusos que envolvem crianças, e prever, no art.245, penas para os médicos, professores e responsáveis por estabelecimentos de saúde e educação que deixassem de comunicar os casos de seu conhecimento aos órgãos competentes ou responsáveis. O art. 131 esclarece: "O Conselho Tutelar é o órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente" (Brasil, 1991). Torna-se importante, portanto, a notificação.

Apesar de ser referência mundial, em termos de legislação voltada à infância e adolescência, o ECA necessita de uma maior compreensão e de ser exercido na prática (Donoso, 2006:32).

A Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, em 1999, com a Resolução SES no 1.354, “tornou compulsória a notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes até 18 anos incompletos e contra portadores de deficiência, o que indica o reconhecimento da relevância do problema e a disposição de combatê-lo” (Gonçalves & Ferreira, 2002:316).

De acordo com Cavalcante (2005:2) “em 17 de junho de 2004, foi sancionada a lei n.10.886/04, acrescentando um novo tipo ao artigo 129 do Código Penal - a violência doméstica, como meio de conter o avanço dessa manifestação de violência na família”.

Os dados da atualidade nos mostram, segundo as estimativas da UNICEF (2009), entre 60 mil e 100 mil crianças são vítimas do comércio sexual nas Filipinas; em Bangladesh, a média de idade das vítimas de exploração sexual é de 13 anos. Nas praias do Quênia, 150 mil crianças são exploradas diariamente, por turistas oriundos de países mais ricos (Folha Online).

De acordo com a Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância, 12% das 55,6 milhões de crianças brasileiras menores de 14 anos são vítimas anualmente de alguma forma de violência doméstica. Em média, 18 mil crianças são agredidas por dia, 750 violentadas por hora e 12 são vítimas de agressão a cada minuto. As mais afetadas são meninas entre 7 e 14 anos, que sofrem principalmente de abuso sexual. Já a violência física atinge tanto os meninos quanto as meninas. Além da agressão corporal, o abandono, a negligência e a violência psicológica também fazem centenas de vítimas todos os dias nas famílias brasileiras.

O crescimento da violência, em especial que envolve crianças precisa ter a atenção urgente da sociedade, além da sua conseqüente banalização, caso não sejam combatidos com eficácia, acabarão por acarretar um esfacelamento da infância.

3. FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA

Segundo dados do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia), de 1999 até 2007, foram registrados 28.840 casos de agressão física, 28.754 de violência psicológica e 16.802 de abusos sexuais em todo o país.

Caminha (2000) diz que Abuso é o termo utilizado para definir uma forma de violência que envolve crianças e adolescentes, de forma repetitiva e intencional por alguém da família ou próximo da criança, que usa do poder ou da força física para envolvê-la em atos aos quais não está apta em nível biológico, psicológico ou cultural.

A violência doméstica que envolve a criança pode advir de diversos fatores internos ou externos ao indivíduo. Alguns sinalizadores mais comuns no contexto familiar são: dependência de álcool drogas por parte dos responsáveis; distúrbios conjugais recorrentes, desapego nas relações familiares; histórico de violência psicológica e de abuso físico ou sexual na infância; estresse por experiências traumáticas vivenciadas na vida familiar e individual, como por exemplo: morte de um membro da família, desemprego, impacto de doença no meio ambiente familiar (Dallalana e Freitas, 1998).

As formas em que a violência se apresenta, segundo o Ministério da Saúde, são (BRASIL, 2001a):

a) Violência física: acontece quando uma pessoa tenta causar ou causa dano não acidental, através da força física ou de alguma arma que pode resultar ou não em lesões internas, externas ou ambas;

b) Violência sexual: constitui-se de qualquer ação em que através de força física, intimidação psicológica ou coerção, uma pessoa obriga outra, contra a vontade desta, ao ato sexual ou a expõe em interações sexuais que possam gerar sua vitimização;

c) Violência psicológica: ocorre quando uma pessoa causa ou tenta causar dano à identidade, à auto-estima ou ao desenvolvimento de outra pessoa;

Neste trabalho será enfatizada a violência física e a violência sexual.

3.1 - A VIOLÊNCIA FÍSICA

 Emprego de força física no processo disciplinador de uma criança ou adolescente por parte de seus pais e/ou responsáveis. Vai desde a simples palmada no bumbum até agressões com armas brancas e de fogo, instrumentos e imposições de queimaduras, socos, pontapés. Relaciona-se a qualquer ato disciplinador que atinja o corpo de uma criança/adolescente (Guerra 2001:32).

Uma questão interessante na citação acima é que qualquer palmada é considerada violência, mas é fundamental que o contexto dessa palmada seja analisada.

Quando nos referimos à palmada, nos referimos necessariamente a uma imposição de força sobre a criança com o objetivo de discipliná-la. A contingência relacional desaparece, isto é, a educação passa a não se dar por uma referência em um contexto, mas pela imposição de força e subjugamento da criança. No entanto, é possível afirmar que se na dinâmica educacional a referência tem lugar fundamental, é verdade que uma referência corporal possa ser utilizada para estabelecer uma forma de comunicação mais firme e evidente. Assim, o que estaria em jogo não seria uma palmada, mas um contato corporal como segurar a criança com mais pressão e firmeza, como uma forma equivalente e modular de uma impostação de voz.

Grevem (1992:52), afirma:

Sentimentos gerados pela dor decorrente das agressões física de adultos contra criança são na maioria das vezes reprimidos, esquecidos, negados, mas eles nunca desaparecem. Tudo permanece gravado no mais intimo do ser e os efeitos da punição permeiam nossa vida, nossos pensamentos, nossa cultura.

Os maus-tratos foram constituídos como um problema social a partir dos 749 casos apresentados pelos médicos Kempe e Silvermam (1977), de crianças vítimas de violência física doméstica, definindo esse fenômeno como Síndrome da Criança Espancada, que resultaram em 78 mortes. Esta síndrome se refere à criança de com ou menos de 3 anos,  que sofreram ferimentos, fraturas ósseas, queimaduras decorridas em épocas e sempre inadequada ou inconscientemente explicadas pelos pais. O diagnóstico deve se basear em evidências radiológicas dos repetidos ferimentos (p.40).

A violência doméstica que envolve a criança e o adolescente tem suas raízes na maneira como nossa sociedade percebe a criança e o período de infância, concepção essa que só pode ser compreendida e transformada dentro do seu contexto histórico.“ (...) Dentre as formas de manifestação do fenômeno em questão, culturalmente a Violência Física é adotada pela sociedade como método educativo e disciplinar” (Silveira, 1999 apud Silva, 2002:89). Alguns adultos tentam resolver os seus conflitos e utilizam o modelo autoritário. Utilizam como justificativa a correção e disciplina das crianças, baseando-se na educação que receberam de seus pais.

Nossa cultura admite o direito sem limites dos cuidadores sobre a criança, o que leva ao abuso de poder do mais forte sobre o mais fraco. Crianças são consideradas socialmente inferiores. Assim, a aplicação do castigo corporal, da palmada e da surra com chicote são práticas vistas como normais, aceitáveis socialmente e usadas como medida corretiva e disciplinatória amparados na figura do pátrio poder.

3.1.1 – CONSEQUÊNCIAS

As conseqüências desse tipo de violência vão desde simples marcas no corpo até a presença de lesões tóraco-abdominais, auditivas e oculares; traumatismos cranianos; fratura dos membros superiores e inferiores, queimaduras e ferimentos diversos que podem causar invalidez temporária ou permanente, quando não, a morte. A mortalidade por violência se constitui atualmente, na segunda causa de morte para crianças e jovens na faixa etária entre 5 a 19 anos e é a segunda causa de morte na faixa etária entre 1 a 4 anos de idade, perde por pouco, para as doenças do aparelho respiratório (Silva, 2002 p.87).

3.1.2 – QUESTÕES LEGAIS

As crianças atualmente contam com o apoio de algumas leis que as protegem. No Código Penal, como é o caso do Artigo 129 em seu parágrafo 9º, trata que é crime de Lesão Corporal (espancamento), ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. Com pena de detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos, para os casos de ser praticado contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, fato que se agrava se a vítima for deficiente (Angher, 2006).

Art. 223 - Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. Parágrafo único - Se do fato resulta a morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos. Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos. Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF – 88).

Abaixo alguns artigos do ECA que vêm salvaguardar esses direitos da criança e do adolescente:

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabe-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Art. 24. A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o artigo. 

3.2 – A Violência Sexual:

Violência sexual ou abuso sexual são termos que remetem a um mesmo fenômeno. Entende-se abuso sexual como:

(...) todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente essa criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa (Azevedo e Guerra 1998:05).  

Segundo Corsi (1997 apud Narvaz, 2003:2) relata que cerca de 90 % dos agressores nos casos de violência sexual são pais biológicos ou padrastos, sendo que a maior incidência se dá entre as meninas, de cerca de 7 a 11 anos de idade, com 25% de incidência de vítimas menores de 7 anos de idade. No entanto, é muito difícil a denuncia dos casos de abusos sexuais, portanto, seja qual for o número que se vê nas estatísticas, seja quantos milhares forem, devemos ter em mente que, de fato, esse número pode ser bem maior. A maioria desses casos não é reportada, tendo em vista que as crianças têm medo de dizer a alguém o que se passou com elas. No Brasil, entre 2000 e 2003, ocorreram 1.565 denúncias, mas a maioria dos casos não chega ao hospital nem à delegacia, pois “medo, vergonha e preconceito inibem a denúncia", afirma Ferrari (2004). Além disso, esse tipo de agressão tem uma característica peculiar: "em geral, o abuso sexual doméstico é marcado por comportamentos sedutores e não pela violência, o que oculta os agressores" (Abrapia).

A literatura considera abusos sexuais certas práticas como, mostrar os genitais de um adulto a uma criança, incitar a criança a ver revistas ou filmes pornográficos, ou utilizar a criança para elaborar material pornográfico ou obsceno. Na maioria dos casos, o autor de um abuso é um familiar ou tem intimidade com a criança, como o pai, o padrasto, irmão ou outro parente qualquer. Assim sendo, pode agir com liberdade, sem levantar suspeitas, ao demonstrar seu afeto, utilizando-se da distribuição de presentes e doces, para dissimular suas intenções sexuais. Em geral, lança mão da sedução e não da violência para conseguir o que quer. Outras vezes o abuso ocorre fora de casa, como por exemplo, na casa de um amigo da família, na casa da pessoa que toma conta da criança, na casa do vizinho, de um professor ou mesmo de um desconhecido. O ciclo só é rompido quando alguém flagra o abuso, quando a criança revela o abuso ou em vista da necessidade de internação, por problemas de infecção, gravidez, sangramento. Estas são algumas das alterações percebidas na criança: dificuldade para dormir, apatia, depressão, baixo rendimento escolar, conhecimento sobre sexo incompatível com sua faixa etária, medo exagerado ou problemas de fala (Abrapia, 2005).

O abuso sexual supõe uma disfunção em três níveis: o poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor); e o uso delinqüente da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de propriedade sobre seu corpo (GABEL, 1997, p.10).

Furniss (1993) diz que a criança que é envolvida sexualmente com os adultos não tem capacidade de dar um consentimento maduro, essa pratica viola tabus sociais e papeis familiares. O estereótipo da criança sedutora que aprecia o abuso sexual e conscientemente seduz o adulto, nada tem a ver com a realidade do abuso sexual. São os adultos que projetam seus próprios pensamentos sexuais nas crianças. São os adultos responsáveis em estabelecer os limites e traçar as fronteiras adequadas. Neste mesmo autor, destaca-se o seguinte trecho:

Nem mesmo os mais sexualizados ou sedutor comportamento jamais poderiam tornar a criança responsável pela resposta adulta de abuso sexual, em que a pessoa que comete o abuso satisfaz seu próprio desejo sexual em resposta à necessidade da criança de cuidado emocional (Furniss, 1993:21).

O adulto geralmente faz com que a criança participe do abuso, que apresenta a atividade como se fosse um jogo ou algo especial e divertido, e o poder do adulto acaba transmitindo informações à criança que o comportamento proposto é aceito pelos demais ou é algo que deve ser rigorosamente escondido. Ele pode oferecer recompensas ou subornos. Desta forma, quando a criança percebe que algo está errado, normalmente, se sente culpada e com vergonha. Ela acredita que poderia ter parado e não o fez, dando assim um consentimento.

 

3.2.1 – Consequências

 

A conseqüência do abuso sexual vai depender do contexto em que ocorreu, não podemos avir, de fato, em todos os casos, um dano. É preciso que haja cuidado para não causar traumas na criança, impondo-lhe os conceitos morais da nossa sociedade, e expondo-a a testes e inquéritos desnecessários.

“o dano só pode ser verificado a posteriori, freqüentemente transcorrido algum prazo após o evento violento; além disso os efeitos da violência sobre o corpo ou a psique da criança variam em larga escala tanto em natureza quanto em intensidade. Caímos portanto numa circularidade” (GONÇALVES, 2004:.285).

De acordo com Gonçalves (Ibidem), ainda não é possível conhecer as causas e as conseqüências da violência, os estudo são recentes nesse tema e faltam elementos para a compreensão desse fenômeno. Há uma dificuldade em correlacionar causa e efeito, trata-se de um fenômeno multicausal, não há uma única resposta para esse problema. Vejamos, portanto, o que falam alguns autores a respeito das conseqüências.

Conforme Caminha (2000), este tipo de violência gera, muitas vezes, desordem cognitiva, afetiva, comportamental e fisiológica. Além de culpabilidade pelo abuso, depressão, hipersexualidade, agressividade, comportamento auto-destrutivo, fatores que influem consideravelmente na auto-imagem da criança, e em sua auto-estima. Os sintomas dissociativos, são citados como um dos primeiros efeitos do estresse pós-traumático, em situação de violência infantil.

Segundo Salter (2003), a criança que é sexualmente abusada cria sentimentos de medo, vergonha, perda da confiança em pessoas do mesmo sexo do abusador, sentimentos de culpabilidade, baixa auto-estima, para além de mais tarde poder vir a sofrer de depressão e ansiedade. Contudo se o abusador for um familiar a angústia ainda é maior. É importante ressaltar que nem sempre é possível fazer a correlação dessas conseqüências com o ato em si, já que nesse tipo de violência, como já foi dito, os efeitos só quando aparecem, o fazem a longo prazo.

 

3.2.2 – Questões Legais

Se o abuso ocorrer com uma pessoa com idade menor de 14 anos e for provado qualquer comportamento libidinoso por parte de um adulto, mesmo sem evidências físicas, o agressor é enquadrado no crime de atentado violento ao pudor, que pode pegar de 6 a 10 anos de cadeia. Dos 14 aos 18 anos é necessária a confirmação de que o abuso se deu com violência e o acusado será julgado por estupro, já que não existe uma legislação específica que proteja os jovens do abuso sexual. A prescrição do crime é de cinco anos, isto é, se o abuso aconteceu entre os 4 e 9 anos, e a pessoa só fizer a denúncia quando adulta será tarde demais, pois a acusação não será aceita. O crime prescreve ao se passarem cinco anos.

Com o objetivo de ilustrar as penalidades impostas àquele que comete abuso, alguns artigos do código penal foram citados, a saber:

O Artigo 130 do ECA dispõe: “verificada a hipótese de maus tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum” (Brasil, 2001).

No Código Penal encontramos o art. 214, Atentado violento ao pudor que diz: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela realizar ato de libidinagem, ou induzir a praticá-lo ou presenciá-lo: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Art. 240.  Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, de criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. 

Todos os crimes sexuais têm somente penas de reclusão, em especial o estupro e o atentado violento ao pudor, que foram considerados crimes hediondos e estão incluídos na Lei 8.072, de 25.7.90 (CAMINHA, 1994).

 

3.3 – O PAPEL DO PSICÓLOGO FRENTE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 

Atender crianças em situação de violência doméstica não é tarefa fácil. Existe uma dificuldade por parte dos profissionais para lidar com essa demanda, tanto pelo despreparo da identificação quanto da notificação, principalmente quando se trata de abuso sexual, sendo esse de difícil comprovação por falta de provas da ocorrência quando não há penetração, quando apenas “(...) tome a forma de manipulação ou sexo oral (...) ou ocorra no interior de um jogo de sedução gradual” (GONÇALVES, 2002 p.293).

Os profissionais que atuam em diversos segmentos, tais como na saúde, na educação e nos sistemas de garantias de direitos da infância e da adolescência, despreparados tecnicamente (Brino & Williams, 2003) e influenciados pela crença de que as crianças mentem e fantasiam sobre o abuso, tendem a desacreditar e a invalidar a tentativa de revelação. O tabu da sexualidade perpassa todo o tecido social, e dificulta o acolhimento da revelação do abuso sexual não só pelas mães das crianças e pela família, mas pela comunidade social e científica, o que é uma forma de (re)vitimização. (Gabel, 1997). A crença de que a criança fantasia o abuso parece estar associada à disseminação da psicanálise e das fantasias edipianas, tributárias da teoria freudiana da sedução.

Os profissionais que atuam com o fenômeno da violência doméstica precisam de um olhar cuidadoso e não isento sobre as questões humanas envolvidas. Torna-se imperativo a responsabilidade, a ética e a realização dos encaminhamentos que forem necessários para interromper o ciclo de violência, principalmente a fim de proteger a criança, uma atuação inadequada pode comprometer seriamente a vida de uma criança a qual, na maioria das vezes, não tem condições de se defender da violência que lhe é imposta.

A complexidade dos processos envolvidos exige uma abordagem multidisciplinar que integre os três tipos de intervenção: punitiva, protetora e terapêutica, como propõe Furniss (1993). Integrar essas ações de forma a não causar maiores danos à criança é o grande desafio dos profissionais. Como diz Ribeiro (2002):

A violência deve ser analisada a partir de uma postura a mais isenta possível de juízos de valor ou moral, ampliando as possibilidades de intervenção curativa. Só assim, a psicanálise poderá sustentar sua especificidade, qual seja, questionar tudo novamente, permitindo que se considere o aprisionamento a determinados sintomas, como as situações de envolvimento sexual entre adultos e crianças (RIBEIRO, 2002:2)

 

No que se refere à responsabilidade profissional na notificação dos casos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 245, deixa clara a obrigatoriedade de notificar casos de maus-tratos contra a criança ou adolescente, independentemente dos valores ou crenças dos profissionais de saúde. Para quem sabe, ou mesmo suspeita, e não notifica, é prevista multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Muitas são as crianças encaminhadas para um atendimento psicoterápico na tentativa de comprovar se houve ou não um abuso. Esses encaminhamentos vêm do Conselho Tutelar, Pais, Escolas, Ministério Público, etc. Vale ressaltar que não é função do psicólogo dar atestados sobre a ocorrência de um abuso. Isto não se trata de uma questão focal e pontual do campo psicológico, mas do campo jurídico ou policial. Tampouco se estabelece como competência do psicólogo tornar-se um inquiridor e investigador para atender propósitos jurídicos, sejam eles a que propósito forem, principalmente se objetivarem produção de provas investigativas. A função do psicólogo, desta forma, tornar-se-ia outra que não a da escuta, do suporte emocional para que a pessoa saiba lidar tanto com o problema diretamente, quanto seus efeitos indiretos.

O Código de Ética Profissional dos Psicólogos, no artigo 25 consta que "o sigilo profissional protegerá o menor impúbere ou interdito, devendo ser comunicado aos responsáveis o estritamente essencial para promover medidas em seu benefício". No artigo 26: "a quebra de sigilo só será admissível, quando se trata de um fato delituoso e a gravidade de suas conseqüências para o próprio atendido ou para terceiros puder criar para o psicólogo o imperativo de consciência e denunciar o fato".

Assim, cabe ao Psicólogo avaliar cada caso de forma a pensar uma melhor maneira de trabalhar a família e o paciente em questão, sempre tendo como ponto de partida entendimento claro da situação com os sintomas em jogo. Em caso de risco de vida, é de extrema importância que haja uma intervenção por parte do profissional, ou da Instituição para salvaguardar a criança. Além disso, a pessoa em foco deve ser compreendida a partir do seu ambiente natural e na sua própria interpretação da realidade.


4. ALGUNS ASPECTOS SOBRE A LEGITIMIDADE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

“Na atualidade, abordar, sob qualquer aspecto, o tema violência, implica trazer, às claras, uma realidade de banalização que acontece nas suas mais diversas variáveis. A violência, no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a-dia que pensar e agir em função dela deixou de ser um ato circunstancial, para se transformar numa forma do modo de ver e de viver o mundo do homem” (ODALIA, 1986:09)

Embora a infância tenha adquirido maior importância nos aspectos sociais, jurídicos e familiares, essa condição de prática de violência contra a criança, se mantém até os dias atuais. Algumas explicações foram e continuam sendo usadas até hoje para afirmar como justo e necessário agir violentamente com a criança, tais como métodos corretivos, educação, disciplina que constituem a violência como forma legitima de socialização. Em Donosa (2006) verifica-se que:

 “o castigo físico mostra-se como uma prática comum, banalizada e, até mesmo, legitimada pela sociedade. No nosso meio, um traço cultural importante parece ser, ainda, a admissão do direito sem limites dos cuidadores sobre a criança, o que leva ao abuso de poder do mais forte sobre o mais fraco” (DONOSA, 2006:101).

Nessa visão, segundo alguns valores sociais, acredita-se que a punição seja um método eficaz de educação, a criança deve sempre aprender a obedecer, “em nome da disciplina e da obediência, a criança é maltratada..." (Marmo et al., 1995:314). Verifica-se esta tendência em diversos contextos construídos a partir do pressuposto de que estas práticas inibem os comportamentos considerados prejudiciais.

O castigo físico foi introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas aos indígenas que ficaram horrorizados e que desconheciam o ato de bater em crianças. A correção era vista como forma de amor. Eles consideravam que dar mimo fazia mal aos filhos e deveria ser repudiado. Acreditavam que vícios e pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com açoites e castigos. O amor do pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensina que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida” (Del Priore, 2004, p. 97). Isso relembra que, na nossa tradição, transmitida e transformada pelas famílias ao longo de séculos, a disciplina rígida e os castigos físicos e morais eram impostos às crianças como forma de lhes fazer o bem, “aquele que retém a vara, quer mal ao seu filho, mas o que o ama, cedo o disciplina.” (Pv. 13:24).

Segundo Silva (2002), é possível entender-se, através deste provérbio bíblico, que há séculos, a humanidade se escuda em justificativas de caráter religioso para praticar atos violentos na criança. A cultura e as religiões apóiam de modo quase unânime, a onipotência da autoridade parental (p.87).

No Brasil, bem como em muitas outras regiões, é culturalmente aceitável, que os pais possam utilizar da punição física contra os filhos, na tentativa de educá-los e socializá-los, segundo seus interesses e modelos. Este modo de educação reflete a realidade, construída durante muito tempo, em que a criança é simplesmente objeto de realização das determinações paternas. 

Para Nascimento (2002, p.48) é difícil para uma criança internalizar uma regra, quando esta lhe é imposta através dos castigos físicos. O resultado não levará a obediência, mas ao ressentimento e ao medo, muitas vezes faz com que a criança resista à aceitação e internalização destas regras. No entanto, alguns pais acreditam que tem que apelar para a punição, principalmente quando tentam ensinar seus filhos a evitar práticas ou objetos perigosos, ou quando desejam inibir determinadas atividades. Na tentativa de corrigi-las, justifica-se a intervenção agressiva. Conforme Baptista (2002):

 "Crê- se que a imposição de limites às crianças deve ser, necessariamente, acompanhada de medidas de censura aplicadas moderadamente, que podem ir desde agressões físicas, restrições à liberdade de locomoção, imposição de obrigações ou tarefas humilhantes até rotinas rigorosas que comprometem o desenvolvimento físico e psíquico da criança e do adolescente" (BAPTISTA. 2002:184).

Santo Agostinho (354-430 d. C.) justificava a violência física e o castigo corporal pelo argumento da corrupção moral da infância (Machado, 1996 p.133). A criança era pensada como um ser imperfeito, representante do mal e deveria ser educada. Isso mostra um argumento religioso e moral que reflete uma cultura punitiva.

Para Estrela (1994, p.15) o termo disciplina assume várias significações no decorrer do tempo, como instrumento de punição, obediência às normas, direção moral, regra de conduta para fazer reinar a ordem, punição e dor. Se pensarmos o termo indisciplina, ele é definido como desordem proveniente da quebra das regras estabelecidas.

O poder disciplinar é com efeito um poder que (...) tem como função maior adestrar. (...) A disciplina fabrica indivíduos; é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (FOUCAULT, 1998:143).

Durkheim não é a favor dos castigos corporais. Para ele, como os objetivos da educação moral consistem em transmitir à criança o sentimento de sua dignidade de homem, as penas corporais se tornam perpétuas ofensas a esse sentimento, “não só não se deve bater como também se deve proibir qualquer castigo susceptível de prejudicar a saúde da criança” (DURKHEIM 1994: 303).

No entanto, Zagury (1993) relata que em algumas situações, mesmo com medo, a criança identifica esse ato de apanhar humilhante, e encontra forças para enfrentar os pais, quando dizem, por exemplo, “nem doeu”. Essa é uma forma de defesa que pode redundar em mais agressão, em razão do possível descontrole dos pais. Portanto, o que muitos pais convencionam chamar de “palmadas” pode acabar até mesmo em espancamento. A punição física, muitas vezes, é utilizada de maneira descontrolada, mais como alívio para quem bate do que como meio disciplinar (BESSA et al., 1989).

Essa realidade remonta a aceitação da prática de violência na sociedade, seja como método satisfatório de educação, seja como mecanismo presente no cotidiano de sanção utilizado junto às crianças por seus responsáveis. É o que podemos verificar no estudo realizado por Brito et al (2005:149) onde registra que, nos atuais costumes brasileiros, a punição física ainda é usada como instrumento educativo, sendo defendida por alguns pais. Aponta que em algumas circunstâncias pode favorecer a cronicidade da violência física contra a criança. Refere que, em pesquisa realizada no Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMI - Porto Alegre) verificaram que esta modalidade de violência estava presente em 58% das famílias participantes.

Outra questão que torna legitima a violência doméstica são os ganhos secundários. Muitas mulheres deixam de denunciar o abuso com medo de perder seu companheiro, ou a ajuda financeira que este lhe dá, ou pretensamente salvar o casamento.

Famílias que interagem rotineiramente com uso da violência não conhecem outra forma de contato a não ser essa. A comunicação familiar vai acontecer a partir dos diversos tipos de abuso. Torna-se necessário os atos violentos e uma compulsão a repeti-los, para produzir uma forma de contato, um elo entre os membros da família. Como descreve Sgroi (1982):

Para algumas crianças, a atividade sexual pode ser virtualmente a única interação ou forma de intimidade física carinhosa que elas têm em casa. Apesar da mãe disciplinar a criança e prover suas necessidades físicas, geralmente não existe afeição e um elo emocional entre eles e essa lacuna pode se parcialmente preenchida pelo agressor (SGROI, 1982:16).

É fundamental trabalhar toda a família e interromper esse ciclo que, legitima e banaliza os atos abusivos que envolvem crianças e adultos dentro da esfera familiar.


CONCLUSÃO

 

Este trabalho procurou descrever a violência doméstica que envolve crianças e os aspectos socioculturais da violência e da infância. Além de verificar fatores que legitimam até os dias atuais essas práticas abusivas.  

O diagnóstico da violência doméstica constitui-se em um desafio, principalmente por ser assunto complexo, polêmico e multicausal, que afeta e altera toda a estrutura familiar. A transmissão cultural mostrou-se como um componente forte no processo de educação, sendo, às vezes, explicitado como objetivo educacional a utilização de métodos corretivos. A tradição se impõe, de forma consciente e inconsciente, seja nas representações gerais sobre a forma de educar, seja nos valores e limites internalizados, seja na repetição automática da experiência pessoal e das gerações. Por isso, muitas vezes os atos violentos ficam limitados a quatro paredes do que se chama “lar”, ou então, a violência é utilizada com pretexto para uma boa educação.

A violência doméstica tira esses sujeitos da condição que o Estatuto da Criança e do Adolescente veio inovar na literatura jurídica brasileira: a situação de sujeito de direitos. Sendo assim, torna-se necessário defender o direito constitucional de que crianças e adolescentes têm de estar salvas de toda forma de violência, crueldade e opressão para que tenham uma vida digna, enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento e enquanto seres humanos.

Faz-se necessário aos profissionais da saúde, particularmente o psicólogo, um olhar atento e cuidadoso, livre de idéias morais e sociais, culturalmente enraizadas, sobre o tema. Além de encarar a violência como fenômeno crescente e, portanto, a urgência de se aproximar dessa realidade, para então desmistificar algumas crenças e valores tão ultrapassados, como por exemplo, o lar é um lugar seguro e intocável; abuso sexual é cometido por pessoas estranhas, desconhecidas; a criança precisa apanhar para aprender; mãe é sinônimo de amor e carinho; todas as crianças fantasiam e mentem sobre supostos abusos; etc. Os profissionais mantêm uma posição de desinformação, negação, indiferença, preconceito e temor com respeito a esse problema, o que dificulta possíveis detecções e prevenção de situações perigosas.

Vale ressaltar que, nem todo envolvimento sexual entre crianças e adultos faz-se de forma violenta, é preciso verificar o contexto e como é a família. Procedimentos a posteriori tendem a traumatizar muito mais as criança (prisão da pessoa querida, afastamento do lar, exame ginecológico, testes psicológicos, entrevistas com profissionais desqualificados e sem nenhum preparo, vitimização, etc.) do que o ato propriamente dito. Possibilitar a criança construir um espaço onde ela possa lidar com essas questões é mais importante e não procurar um culpado para punir. A criança precisa elaborar o ocorrido e isso deve ser feito no tempo dela.

É fundamental o entendimento claro da situação, fazer os encaminhamentos que forem necessários a fim de interromper o ciclo de violência, principalmente a fim de proteger a criança, pois, uma atuação inadequada pode comprometer seriamente a vida de uma criança a qual, na maioria das vezes, não tem condições de se defender.

 

 

 


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por Jennifer Paixão Justo Carnero

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