Condicionantes da prática docente na graduação em Psicologia

Hoje a formação do psicólogo que recai sobre a prática clínica
Hoje a formação do psicólogo que recai sobre a prática clínica

Psicologia

03/07/2013

O surgimento da profissão de psicólogo no Brasil ocorreu em 1962, através da lei 4.119 de 27/08/62, momento em que já existiam alguns cursos de Psicologia em níveis de graduação e especialização, tendo o primeiro curso sido fundado em 1953. Desde então, observou-se um espantoso crescimento no número de cursos de graduação em Psicologia, especialmente em instituições particulares. A despeito das transformações ocorridas no currículo e na estrutura dos cursos, o que se observa ainda hoje é um perfil de aluno bastante parecido com o formado há 50 anos.

As áreas de maior concentração de profissionais são a clínica, organizacional e escolar, voltadas para o trabalho de forma individualizado e com foco nas camadas mais privilegiadas economicamente da sociedade, embora haja crescente demanda para inserção de profissionais em áreas voltadas ao trabalho com grupos, psicologia social e populações carentes. Dimenstein (2000, p. 50 apud LEITE; SILVA, 2010, p. 5) denuncia que “[...] a psicologia que está presente em nossas universidades tem legitimado práticas hegemônicas, contribuindo para o controle social, ensinando o sujeito a adaptar-se às circunstancias sociais”, perfil este contrário ao de um profissional comprometido com a transformação social, que recebeu uma educação emancipatória.

Diante desta constatação, urge questionar: Que elementos presentes na relação ensino-aprendizagem influem sobre a prática docente, de forma que esta se configure uma educação reprodutivista? Partindo deste problema, o presente texto visa refletir sobre os fatores que interferem na realização de uma educação emancipatória, configurando-se desafios encontrados pelos professores para o exercício da docência reflexiva nos cursos de graduação em Psicologia em IES privadas. A partir desta reflexão pretende-se fomentar a discussão sobre o tema, contribuindo para a formação e aprimoramento da prática no magistério superior.

A importância do papel do professor e a necessidade de uma educação que promova transformação da sociedade têm sido temas amplamente defendidos por diversos autores. De uma forma geral, a responsabilidade por produzir profissionais autônomos, emancipados, comprometidos com o contexto social em que estão inseridos recai sobre os ombros do docente. Patto (2010) e Marchesi (2008) concordam que o trabalho dos professores de instituições de ensino superior (IES) não se trata de simples reprodução, uma vez que a aprendizagem ultrapassa a mera transmissão de conhecimentos, pois também é necessário aprender a relacionar-se, a respeitar, a conviver, a ser responsável pelo mundo em que vivemos e pelas outras pessoas. Suhr e Silva (2010, p. 58) afirmam que o professor tem “[...] um papel marcante na formação de sujeitos que compreendam a necessidade de refletir criticamente e possam contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável”. De fato, é inegável a importância do papel do professor na formação de profissionais e cidadãos conscientes (ou não) de seus deveres e capazes de uma prática profissional criativa e transformadora. Para isto, é necessário que o docente assuma uma postura crítica e reflexiva sobre sua atuação como educador, sem a qual “[...] a teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo” (FREIRE, 1996, p. 12).

Entretanto, considerar a atividade do professor, suas características e frutos, sem contextualizá-la, seria incorrer no mesmo erro de quem espera julgar com exatidão uma causa ouvindo apenas uma das partes envolvidas, fixando-se em uma única versão dos fatos. Seria dar crédito à crença da neutralidade política da educação. Seria acreditar que o fazer docente é algo natural, que se configura à inteira mercê do professor, sem considerar que, estando o mesmo imerso num dado contexto histórico, também sua prática é resultado deste e sofre influência direta da ideologia dominante. Portanto, ao refletirmos sobre a prática docente, faz-se necessário compreender o professor como ser histórico-social, “[...] um ser condicionado, mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento”, nas palavras de Freire (1996, p. 48).

Assumindo-nos como seres condicionados, podemos nos perguntar: Que fatores condicionantes estão presentes no magistério superior no curso de Psicologia, sobretudo nas IES particulares? Que elementos influem direta ou indiretamente sobre o fazer docente, (im) possibilitando uma prática reflexiva, geradora de uma educação emancipatória?

Dois elementos presentes no contexto dos cursos de graduação, sobretudo na formação em Psicologia em IES particulares, merecem destaque com relação ao seu papel e poder condicionante sobre o magistério superior: a ideologia capitalista que rege os interesses da educação superior no Brasil e o currículo, decorrente dela. Em pesquisa realizada, Lisboa e Barbosa evidenciam que as instituições superiores com cursos de Psicologia, em sua maioria privadas, buscam as regiões mais ricas do país para se instalarem. Para os autores,

é mantida, dessa forma, a lógica de uma educação superior voltada para o mercado, e não necessariamente para as necessidades da população: busca-se o lucro onde o capital se concentra, contribuindo para que haja uma significativa distância entre a formação acadêmica, a realidade profissional e as demandas da sociedade. (2009, p. 727).

A ideologia capitalista que rege as relações de ensino-aprendizagem nas IES ganha corpo e influi diretamente na prática docente através da organização curricular. É comum a existência de currículos e ideologias reprodutivistas, baseados na organização disciplinar, em que o conhecimento é tratado como produto a ser transmitido aos alunos. Zabala (2002) aponta como razões para a perpetuação deste modelo curricular sua coerência científica, associada à própria formação dos professores e à segurança do conhecido. Lima, Zanlorenzi e Pinheiro afirmam que

há uma dualidade implícita nos relatos sobre a realidade do contexto escolar, expressa no insucesso da maioria dos educandos: nas linhas, um discurso com traços de contemporaneidade, declarando abraçar a diversidade e, nas entrelinhas, uma prática que mantém o status quo político-social, deflagrando uma antidemocracia na qual a busca por padronização parece ser mais conveniente para muitos. (2011, p. 106).
A estrutura atual do currículo da maioria dos cursos de graduação em Psicologia não prepara o aluno para atuação crítica e comprometida com a transformação social, dando-lhe referenciais teórico-práticos que de fato possibilitem sua atuação responsável nos diversos contextos sociais em que o psicólogo pode se inserir. Ao contrário, a ênfase da formação do psicólogo recai sobre a prática clínica até mesmo quando ocorre a tentativa de oferecer preparação para atuação em alguma outra área como escolar ou do trabalho.

Como produto direto da ideologia e organização curricular, observa-se na maioria dos cursos de formação em Psicologia a dicotomia ensino-pesquisa, a qual encontra na possibilidade de oferecimento facultativo por parte da IES de formação com perfil de pesquisador e de professor, além da formação como psicólogo, espaço a que estas instituições ofereçam apenas o mínimo exigido. Desta forma, a formação voltada para a prática da pesquisa como requisito para o exercício crítico da profissão fica comprometida e, em muitos casos, negligenciada, contribuindo para a reprodução de profissionais desconectados da realidade em que estão inseridos, sem engajamento nas questões sociais, tal como acontecera no surgimento da profissão.

Faz-se necessário, portanto, compreender o exercício da docência reflexiva como parte do contexto sócio-histórico em que a IES está inserida, no qual há elementos capazes de minar os esforços dos professores por desenvolverem uma educação emancipatória. Entre estes fatores estão principalmente a ideologia dominante e a organização curricular que dela decorre, configurando-se em desafios e, muitas vezes, obstáculos a serem transpostos pelos docentes a fim de contribuírem para a formação de profissionais críticos e autônomos, capazes de transformar a realidade.

Cumpre ao professor reflexivo ter sempre em mente algumas questões norteadoras, que lhe sirvam de bússola e os impeçam de perderem-se em sua prática ao sabor das ondas: O que estou ensinando e para quem? O conteúdo e a forma como estou ensinando satisfaz os interesses de quem? Com que propósito estou exercendo o magistério? Muito mais importante que reconhecermo-nos seres condicionados, é mantermos sempre em mente que somos capazes de superar nosso próprio condicionamento através da adoção de uma prática reflexiva. Não nos esqueçamos, porém, que uma prática docente verdadeiramente reflexiva, capaz de gerar uma educação emancipatória, somente é possível com a confluência dos demais fatores intervenientes no processo ensino-aprendizagem: currículo e paradigma de educação adotado pela IES, ambos produtos da ideologia dominante.


REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LEITE, Clarissa Iris Rocha; SILVA, Eleneide Alves da. Construção de Identidades na Formação em Psicologia. In: IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 22.set.2010, Laranjeiras. Trabalhos apresentados. Disponível em: <http://www.educonufs.com.br/ivcoloquio/cdcoloquio/eixo_13/e13-12.pdf> Acesso em 09.jun.2013.

LIMA, Michelle Fernandes; ZANLORENZI, Cláudia Maria Petchak; PINHEIRO, Luciana Ribeiro. A função do currículo no contexto escolar. Curitiba: Ibpex, 2011.

MARCHESI, Álvaro. O bem estar dos professores: competências, emoções e valores. Tradução Naila Tosca de Freitas. Porto Alegre: Artmed, 2008.

PATTO, Maria Helena Souza. Introdução à psicologia escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

SUHR, Inge Renate Fröse; SILVA, Simone Zampier da. Relação professor-aluno-conhecimento. Curitiba: Ibpex, 2010.

ZABALA, Antoni. Enfoque globalizador e pensamento complexo: uma proposta para o currículo escolar. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2002.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Gisele Silva Corrêa

por Gisele Silva Corrêa

Psicoterapia, individual e em grupo, a jovens e adultos, na abordagem cognitivo-comportamental. Experiência em Psicologia Escolar, realizando palestras, grupos psicoeducativos e trabalho multidisciplinar através de apoio e participação em projetos pedagógicos destinados a professores, pais e alunos. Experiência em Psicologia da Saúde, realizando grupos psicoeducativos.

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