Considerações acerca da Educação Especial a partir de Vygotski

Educação e Pedagogia

09/12/2012

Dentre os vários temas pesquisados por Vygotski, a Defectología merece destaque. Os estudos sobre a deficiência perpassam a obra do autor estabelecendo relação com os demais temas. Aqui o destaque será na influência dos aspectos sociais sobre a deficiência. Compreende-se que a deficiência, uma insuficiência corporal, não modifica apenas a relação com o mundo, mas principalmente se manifesta na relação com as pessoas. "El defecto orgánico se realiza como anormalidad social de la conducta" (VYGOTSKI, 1997, p.73).

Na sociedade o defeito toma forma, a partir do convívio social se constitui. O defeito orgânico define as dificuldades primárias, enquanto que o meio social cria as dificuldades secundárias. "Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino sus consecuencias sociales, su realización psicosocial" (VYGOTSKI, 1997, p.19).

Essa proposição vem alterar a concepção que se tinha acerca da deficiência, desloca o olhar: do orgânico para o social. Segundo Vygotski (1997), o defeito orgânica (cegueira, surdez, surdo cegueira, deficiência mental, etc.) afeta principalmente as relações sociais e menos a relação direta com o ambiente físico - fato que diferencia o homem dos demais animais. A deficiência orgânica não se manifesta diretamente, porque olhos e ouvidos são mais que órgãos físicos, são "órgãos sociais".

A deficiência implica degeneração dos vínculos sociais que, segundo o teórico, é a perda mais significativa. A degeneração das relações sociais é o que mais preocupa na deficiência porque é a partir delas que se forma o que Vygotski (1995) denomina de funções psicológicas superiores. As funções psicológicas superiores são mecanismos psicológicos mais sofisticados, típicos do ser humano, que envolvem controle consciente do comportamento, ação intencional e liberdade em relação às características do momento e espaço presentes. Diferem assim das funções psicológicas elementares, que são aquelas presentes na criança pequena e nos animais, como, por exemplo, reações automáticas, ações reflexas e associações simples - essas são de origem biológica (VYGOTSKI, 1995).

As funções psicológicas superiores pressupõem a existência das funções psicológicas elementares, mas estas não são condição suficiente para sua aparição. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores depende essencialmente das situações sociais em que o sujeito participa. “Por tanto, si se pregunta de dónde nacen, cómo se forman, de que módo se desarrollan los procesos superiores del pensamiento infantil, debemos responder que surgen en el proceso del desarrollo social del niño por medio de la transación a si mismo de las formas de colaboración que el niño asimila durante la interacción con el medio social que lo rodea” (VYGOTSKI, 1997, p.219).

Quando Vygotski fala que as funções superiores surgem na interação com o meio social está se referindo ao processo que denomina internalização. Isto é, essas funções psicológicas superiores antes de serem psicológicas foram relações entre pessoas - um processo interpessoal transformou-se em outro intrapessoal. É preciso considerar que as experiências culturais não são simplesmente internalizadas pelo organismo, independentemente do desenvolvimento do mesmo: "el organismo, al asimilar las influencias externas, al asimilar toda una serie de formas de conducta, las asimila de acuerdo con el nível de desarrollo psíquico en que se halla" (VYGOTSKI, 1995, p.155). E, ao assimilar as influências externas, as próprias possibilidades naturais são ampliadas. Acontece que muitas vezes a deficiência implica em dificuldades para que o organismo assimile as influências externas, para que se arraigue na cultura.

Vygotski (1995, 1997) respalda essa ideia no fato de que as sociedades criam ferramentas e aparatos sempre direcionados a um tipo "normal". “El defecto, al provocar una desviación del tipo biológico humano estable, al producir el deterioro de algunas funciones, el fallo o la alteración de órganos - y con ello la reestructuración más o menos esencial de todo el desarrollo sobre unas bases nuevas, de acuerdo a un tipo nuevo -, vulnera, naturalmente, el curso normal de arraigo del niño en la cultura. No debe olvidarse que la cultura está adaptada para un ser humano normal, típico, condicionado por el defecto no puede arraigarse directa e inmediatamente en la cultura, como en el niño normal” (VYGOTSKI, 1995, p.42). O defeito dificulta a assimilação da cultura humana. Por consequência, entende-se que a deficiência dificulta a constituição das funções psicológicas superiores. Fica claro porque Vygotski, nos estudos da Defectología, propunha que o foco de análise eram os processos sociais e culturais, não somente o biológico.

A deficiência orgânica não é o mais importante, mas sim as consequências sociais que esta implica. Ao invés de buscar a "cura" da deficiência orgânica, Vygotski propunha que se pensasse em alternativas para que o sujeito, apesar da deficiência, não tivesse prejudicada suas relações com o meio sociocultural. Isto é, preocupava-se com as consequências secundárias da deficiência e menos com o problema primário. A dificuldade primária, a implicação direta do defeito orgânico está relacionada às funções elementares; enquanto que as consequências secundárias afetam as funções superiores.

Vygotski (1997) esclarece a relação da deficiência com as funções elementares e com as funções superiores: “El defecto y la falta de desarrollo de las funciones superiores se encuentran en una relación distinta a la del defecto con el desarrollo de las funciones elementales. Es preciso captar esta diferencia para encontrar la clave de todo el problema de la psicología del niño anormal. Mientras, que el desarrollo incompleto de las funciones elementales es, con frecuencia, consecuencia directa de algún defecto (por ejemplo, el desarrollo incompleto de la motricidad en la ceguera, el desarrollo incompleto del lenguaje en la mudez, el desarrollo incompleto del pensamiento en el retraso mental, etc.), el desarrollo incompleto de las funciones superiores en el niño normal aparece, por lo común, como un fenómeno suplementario, que se erige sobre la base de sus particularidades primarias” (p.221).

A chave para compreender o problema da psicologia da criança deficiente estaria em perceber que nem todos os sintomas apresentados derivam do defeito; as complicações secundárias provêm do "desterro" da coletividade, isto é, do exílio da criança deficiente das atividades sociais (VYGOTSKI, 1997).

A convivência com o grupo cultural possibilita que as funções superiores se constituam. [...] “cuanto el niño se adentra en la cultura, no sólo toma algo de ella, no sólo asimila y se enriquece con lo que está fuera de él, sino que la propia cultura reelabora en profundidad la composición natural de su conducta y da una orientación completamente nueva a todo el curso de su desarrollo. La diferencia entre los planos del desarrollo del comportamiento - el natural y el cultural - se convierte en el punto de partida para la nueva teoría de la educación”(VYGOTSKI, 1995, p.305)

Num desenvolvimento normal os planos de desenvolvimento natural e cultural coincidiriam - na medida em que o desenvolvimento orgânico se realiza num ambiente cultural vai-se transformando num processo historicamente condicionado (VYGOTSKI, 1995, 1997).

Numa criança com deficiência essa fusão das linhas não ocorre naturalmente; isso porque a sociedade está organizada para um tipo normal - com sistemas de signos, instrumentos, ferramentas, pressupondo um tipo padrão de homem que tenha intelecto e "órgãos normais".

Na deficiência, o plano de desenvolvimento biológico está prejudicado e nesse a intervenção geralmente é estéril; entretanto o desenvolvimento cultural não está determinado a priori pelo defeito. Acontece que a pessoa com deficiência acaba sendo privada das trocas sociais, do acesso aos sistemas simbólicos, signos, ferramentas, instrumentos, enfim, a todo "aparato cultural" que organiza a vida na sua sociedade. A proposição de compensação fundamenta-se na criação de meios alternativos para o desenvolvimento das funções comprometidas diretamente pela deficiência, oferecendo oportunidades para que o sujeito alcance os mesmos fins se utilizando de outros meios - pela via do desenvolvimento cultural se busca superar as dificuldades impostas pelo desenvolvimento biológico.

A compensação consiste, então, em se desenvolver vias indiretas de acesso àquelas funções que em sujeitos sem deficiência ocorre como processo natural. Nesse sentido, como exemplos, poderíamos citar a língua de sinais para os surdos, a escrita braile para os cegos, que cumprem o mesmo papel do que a língua oral e a escrita simples no desenvolvimento das funções psicológicas relacionadas a tais processos.

A compensação da deficiência decorre da necessidade que o sujeito sente quando se insere na vida social da comunidade. Assim, se o sujeito é privado dos desafios das trocas sociais o processo de desenvolvimento da compensação não se efetiva: “El destino de los procesos compensatorios y de los procesos de desarrollo en su conjunto depende no sólo del carácter y la gravedad del defecto, sino también de la realidad social del defecto, es decir, de las dificultades a los que lleva el defecto desde el punto de vista de la posición social del niño. En los niños con insuficiencias, la compensación sigue direcciones totalmente diferentes según cuál sea la situación que se ha creado, en qué medio se educa el niño, qué dificultades se le presentan a causa de esa insuficiência” (VYGOTSKI, 1997, p. 136).

As dificuldades que a criança com deficiência vivencia ao interagir socialmente são propulsoras do movimento de reação, de compensação. Sendo assim, as atitudes de superproteção e restrições são empecilhos. É a privação que gera as dificuldades secundárias, que compromete a formação das funções superiores.

No entanto, a privação que compromete o desenvolvimento cultural pode ser modificada: [...] “la colectividad, como factor del desarrollo completo de las funciones psíquicas superiores, a diferencia del defecto, como factor del desarrollo de las funciones elementales, se encuentra en nuestras manos. Así como es prácticamente inútil luchar contra el defecto y sus consecuencias directas, es, a la inversa, legítima, fructífera y promisoria la lucha contra las dificultades en la actividad colectiva” (VYGOTSKI, 1995, p.223). A coletividade proporciona os estímulos para superar as dificuldades secundárias.

Segundo Vygotski (1995) o desenvolvimento cultural é a esfera onde pode ocorrer a compensação da insuficiência: "Donde resulta imposible un desarrollo orgánico ulterior, se abre ilimitadamente el camino del desarrollo cultural" (p.187). Assim, para o autor russo, a discussão da deficiência deveria priorizar o desenvolvimento cultural e social e não apenas o desenvolvimento orgânico, enfatizar as funções psicológicas superiores e não centrar-se nas elementares. As funções elementares são pouco modificáveis, menos dependentes das condições externas, assim são menos educáveis. As funções elementares estão intimamente ligadas ao defeito, e, como o defeito orgânico é dificilmente eliminado, é praticamente estéril a intervenção sobre elas. Dessa forma, a intervenção deve focar-se sobre as funções superiores.

Vygotski (1997) criticava a educação baseada em reabilitação física que era realizada nas escolas especiais. Nesse ambiente se privava as crianças deficientes do estímulo mais importante para o desenvolvimento: a coletividade. Pela coletividade, na educação social, ele acredita que se alcançaria o "fim" da deficiência: [...] “Físicamente, la ceguera y la sordera todavía existirán durante mucho tiempo en la tierra. El ciego seguirá siendo ciego y el sordo, sordo, pero dejarán de ser deficientes porque la defectividad es un concepto social, en tanto que el defecto es una sobre estructura de la ceguera, la sordera, la mudez. La ceguera en sí no hace el niño deficiente, no es una defectividad, es decir, una deficiencia, una carencia, una enfermedad. Llega a serlo sólo en ciertas condiciones sociales de existencia del ciego [...] La educación social vencerá a la defectividad. Entonces, probablemente, no nos comprenderán cuando digamos de un niño ciego que es deficiente, sino que dirán de un niño ciego que es un ciego y de un sordo que es un sordo, y nada más” (VYGOTSKI, 1997, p.82).

O que se busca hoje na educação das pessoas com necessidades especiais é o mesmo que acreditava Vygotski: que deixemos de percebê-las como deficientes. Pode-se dizer, então, que a proposta de educação inclusiva se aproxima da educação social pensada por Vygotski no início do século XX. Decorridos quase cem anos ainda nos debatemos para que, de fato, as crianças com deficiência tenham oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento a partir da interação, das relações sociais num ambiente compartilhado.

Referências
VYGOTSKI, Lev Semenovich (1931). História del desarrollo de las funciones psicológicas superiores. Obras Escogidas III. Madrid: Visor, 1995.
VYGOTSKI, Lev Semenovich (1928).
Defectología. Obras Escogidas V. Madrid: Visor, 1997.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Adriane Cenci

por Adriane Cenci

Professora de Educação Especial pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Especialista em Gestão Educacional e Mestre em Educação também pela UFSM. Aluna do Doutorado em Educação da Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Pesquisando principalmente a temática da inclusão escolar e aprendizagem dos sujeitos com necessidades especiais

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