A cegueira no contexto histórico

Louis Braille e o Sistema Braille
Louis Braille e o Sistema Braille

Medicina

03/11/2015

A ocorrência da cegueira e seus diferentes significados inserem-se na própria história da humanidade, bem como foi marcada por sentimentos de rejeição, preconceito, intolerância, religiosidade e ignorância.

O Código de Manu, provavelmente elaborado entre 200 a.C e 200 d.C, em seu artigo 612 fazia referência à proibição sucessória, sendo que os homens degredados, cegos, surdos, loucos [...], não serão admitidos a herdar.

Pode-se dizer que parte da Antiguidade até o início da Idade Moderna  caracteriza-se como um período místico no que se refere à cegueira, uma vez que se acreditava que esta era uma desgraça. Entretanto, vale ressaltar que a concepção mística da deficiência visual ainda está presente na atualidade, tendo em vista que alguns pensam que os portadores de cegueira não possuem capacidade para realizar determinadas tarefas e quando realizam são denominados de seres superdotados.

A sociedade da Antiguidade, em seu processo cultural, contemplava a rejeição e, muitas vezes, o sacrifício da pessoa cega, a qual era considerada inútil para o trabalho, não atendendo, assim, às exigências daquela sociedade. Portanto, o infanticídio das crianças que nasciam cegas era frequente, bem como o abandono dos que haviam perdido a visão na idade adulta, os quais ficavam entregues à própria sorte. Em Atenas e Esparta, as crianças com deficiência eram abandonadas nas montanhas, enquanto que na Roma Antiga elas eram jogadas nos rios.

A história conta que os cegos nas comunidades primitivas e na antiga Prússia eram barbaramente torturados e condenados à morte, pois acreditava-se que as pessoas cegas eram possuídas por espíritos malignos, convertendo o cego em objeto de temor religioso.

            Em outras sociedades primitivas, a cegueira era considerada um castigo infligido pelos deuses e a pessoa cega levava a estigma do pecado cometido por ele, por seus pais, seus avós ou por algum outro membro da tribo. Algumas tribos nômades  abandonavam os cegos  em locais com animais ferozes  ou nas tribos inimigas. 

            Para o povo hebreu, o homem coxo, cego ou corcunda era considerado indigno, detentor de poderes oriundos dos demônios, cujas impurezas e pecados expressavam-se pelas “marcas”.

            O Egito era conhecido, na Antiguidade, como o país dos cegos, sendo assim chamado por Hesíodo, tendo em vista a alta incidência da cegueira, devido ao clima quente e à poeira.  Referências à cegueira e às doenças nos olhos foram encontradas em papirus e os médicos que cuidavam dos olhos se tornaram famosos na região mediterrânea.

            Na Grécia Antiga, Homero, o grande trovador cego, possível escritor de Ilíada e Odisseia, acabou morrendo na miséria, recitando seus versos pela cidade.

            Para os gregos, a ausência da visão assumia uma conotação negativa, empunhando-a aos sacrilégios e aos adúlteros. Entretanto, algumas pessoas cegas, na Grécia, eram veneradas como profetas, porque o desenvolvimento dos outros sentidos era considerado como miraculoso.

            Em Roma, o procedimento mais comum era o de eliminação do cego. Mais tarde, havia cegos de toda natureza: poetas, filósofos, como Cícero. Na Alexandria, Dydmus, teólogo e matemático. Alguns cegos se tornaram pessoas letradas, advogados, músicos e poetas. Cícero, por exemplo, orador e escritor romano, aprendeu Filosofia e Geometria com um tutor cego chamado Diodotus.  Mas, a grande maioria vivia na mais completa penúria, recebendo alimentos e roupas como esmola. Os meninos se tornavam escravos e as meninas prostitutas.     

           Na Idade Média, a cegueira era utilizada como castigo ou como ato de vingança. Ainda neste período era utilizada como pena judicial, aplicada como castigo para crimes nos quais havia participação dos olhos, como crimes contra a divindade e faltas graves às leis de matrimônio.

           A preocupação social dos religiosos com os deficientes visuais, data do século V, onde parece ter sido fundada a primeira comunidade para cegos, por São Lineu, na França. No século XI, no Ocidente, Guilherme, o Conquistador, criou quatro hospitais para cegos, tendo como objetivo expiar o pecado de ter se casado com uma parente.

           Outro fato interessante foi que Basílio II, Imperador de Constantinopla, no século XI, depois de ter vencido os búlgaros, ordenou que fossem retirados os olhos de seus 15 mil prisioneiros, fazendo com que regressarem para a sua pátria. Contudo, 1 em cada 100 homens teve um olho conservado para que pudessem servir de guia dos demais.

           No Reino Unido, as primeiras referências às pessoas cegas datam do século XII, e mencionam um refúgio para homens cegos, perto de Londres, aberto por William Elsing. Os cegos eram geralmente mendigos que viviam da caridade alheia.

           Em 1260, Luís XIII fundou, em Paris, um asilo destinado exclusivamente para cegos, com objetivo de atender 300 soldados franceses que tiveram seus olhos arrancados durante as Cruzadas.

           Mais atenção foi dada às pessoas pobres e deficientes, principalmente devido à lei - "The Poor Law Act", lavrada em 1601, que mencionava, explicitamente, os pobres, os incapazes e os cegos, prevendo abrigo e suporte para estas pessoas. Desta data em diante e por mais uns duzentos anos, os cegos viveram em suas casas ou em instituições, os chamados "asylums", contando com algum suporte dos governantes.

           Vale ressaltar que o conceito da cegueira para o mundo oriental não tinha o mesmo significado do ocidente.

           Os germânicos impunham aos perjuros, traidores e falsificadores de moeda. Para os bizantinos e merovíngios era o castigo imposto aos agitadores políticos. A cegueira como pena era executada pondo diante dos olhos do paciente uma barra de ferro aquecida ao rubor, ou queimando com ferro o globo ocular ou extraindo-o por incisão ou com os dedos, entre os bizantinos.

           Nas culturas hebraica, árabe e hindu, o fundamental era a audição, pois a fonte suprema da verdade é uma divindade invisível, que só poderia interagir com o homem pela palavra.  Saber ouvir era muito importante.  Por isso, nessas culturas, os cegos eram valorizados, possuidores do dom divino e de grande sabedoria.

           Para a cultura judaica, que seguia o Velho Testamento, a cegueira tinha forte conotação de pecado. Vejamos o texto bíblico: “E os discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?( cego de nascença)  Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestasse nele a glória de Deus...” (Evangelho de São João, 9:2,3).

           A cura dos cegos, na Bíblia, está sempre ligada à remissão dos pecados, à confissão dos pecados.  Conforme Barasch (2001), a Bíblia reflete o pensamento cultural da Antiguidade em relação à cegueira, tendo grande influência sobre artistas e escritores da época e também colaborando para manter o círculo vicioso do preconceito.    O cristianismo rompe aqui com toda a filosofia e cultura do ocidente e oriente, introduzindo um novo modo de pensar a natureza humana diferente. Desfaz-se, assim, o conceito de deficiência visual como pecado e exclusão do ser humano imperfeito;   evidencia-se a não-valorização do olhar físico dos sentidos, mas o da dimensão espiritual humana. Com o fortalecimento do Cristianismo, a situação das pessoas com deficiência se modificou, onde todos são filhos de Deus. O Evangelho dignifica o cego.

           Contraditoriamente, essa valorização da pessoa humana, com o apogeu do Cristianismo, leva, na Idade Média, aos sentimentos de piedade, compaixão e caridade, responsáveis pela criação das primeiras instituições asilares de proteção social aos deficientes visuais, geralmente sob a tutela das igrejas.

           Na época do Feudalismo, alguns cegos como: Didimo de Alexandria, Nicolas Saunderson, John Metcalf, Leonhard Euler, Thomas Blacklock e Maria Tereza Von Paradis, destacaram-se como professores, engenheiros, concertistas, teólogo e outras atividades tendo em vista o recebimento de instrução educacional.

           Na China, a cegueira era bastante comum entre os moradores do deserto. A música era uma alternativa para se ganhar a vida e, para isto, os cegos precisavam exercitar o ouvido e a memória.

           Os japoneses, desde os tempos mais remotos, desenvolveram uma atitude mais positiva com relação às necessidades das pessoas cegas, enfatizando a independência e a autoajuda.  A música, a poesia, a religião e o trabalho com massagem eram as principais atividades dos cegos no Japão, além de serem contadores de histórias.

          Entre os séculos XV e XVI, a filosofia humanística chega ao seu apogeu com o avanço das ciências. Nesse contexto, a deficiência visual passa a ser compreendida como patologia, bem como surgem as primeiras preocupações educacionais relativas às pessoas cegas, perpassando os séculos seguintes.

          A partir do século XVIII, o entendimento a respeito da deficiência visual tornou-se mais aprofundado, surgindo os primeiros conhecimentos anatomo-fisiológicos para a compreensão científica sobre o funcionamento do olho e do cérebro. Os séculos XVIII e XIX marcaram mudanças e um avanço na história das pessoas com deficiência visual.

          No final do século XVIII, surgiu, em Paris, a primeira escola de cegos, o Instituto Real dos Jovens Cegos, criada por Valentin Haüy, em 1784, tendo como objetivo a educação para retirar os cegos da condição vexatória de mendigos, que perambulavam e “perturbavam” a ordem social, além de prepará-los profissionalmente. Portanto, foi um dos pioneiros a desenvolver trabalhos educacionais com cegos, o qual tinha por objetivo provar sua hipótese de que os cegos eram capazes de ler por meio do tato, sendo exemplo a ser seguido por outros, pois logo após a criação desse instituto outras escolas surgiram em cidades como: Liverpool, Londres, Viena, Amsterdã, Berlim, Zurique, Boston e Nova Iorque – o New York Insitute for the Education of the blind , em 1832.

          No início do século XIX, na França, um jovem cego chamado Louis Braille desenvolveu um sistema de caracteres de seis pontos em relevo, denominado sistema braile, que possibilitou a aprendizagem de leitura, escrita e a proliferação de escolas por toda Europa e Estados Unidos. O método braile foi o mais importante e efetivo recurso criado para a educação do deficiente visual e usado até os dias de hoje.

          Em 1829, foi instalado, nas Américas, o primeiro Instituto para cegos em Massachusetts (EUA) e em 1837, foi inaugurada a primeira escola para cegos em Ohio, inteiramente subsidiada pelo governo.

          A história, as lendas, a literatura e a própria Bíblia contribuíram para perpetuar as ideias negativas, os mitos sobre o efeito da falta da visão na vida das pessoas.

          A falta de conhecimento e entendimento sobre o tema, segundo Hutchinson et al (1997), acaba resultando em uma limitação das oportunidades que são oferecidas às pessoas cegas e com baixa visão.

          Durante o período renascentista, as pessoas sem visão passaram a ser o tema preferido de vários pintores. Podemos citar como exemplos os quadros: "Parábola dos Cegos", retrata uma cena em que vários cegos vão caindo em uma valeta, de autoria de Pieter Bruegel (1530 - 1569); "O Tocador de Alaúde", de Georges La Tour (1593 - 1652), no qual o pintor retrata um tocador de alaúde cego; "Os Cegos de Jericó", de autoria de Nicolas Poussin, pintado no ano de 1651, no qual aparecem dois cegos sendo curados por Jesus.

          No início do século XX, a escola segregada havia se expandido. Na segunda metade do século XX, depois da 2ª Guerra Mundial e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se passou a pensar na possibilidade de atendimento às pessoas cegas na escola regular.

          No final da década de 1960 e durante a década de 1970, estruturam-se leis e programas de atendimento educacional que favoreceram a integração do cego na escola regular e no mercado de trabalho.

          Em 1981, a ONU instituiu o Ano e a Década da Pessoa Portadora de Deficiência, abrindo espaço nos meios de comunicação para uma maior conscientização da sociedade.

          A partir da década de 1990, passou a vigorar a “era da inclusão”, em que as exigências não se referem apenas aos direitos da pessoa com deficiência à integração social, mas sim, ao dever da sociedade de se adaptar às diferenças.

          Como vimos, ao longo da história da humanidade, as pessoas cegas se deparam com transformações em suas concepções, sendo concebidas e pensadas de várias formas, algumas até contraditórias (exclusão e inclusão), variando de cultura para cultura e refletindo crenças, valores e ideologias.

 

Referências utilizadas

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Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Luciane Eloisa Brandt Benazzi

por Luciane Eloisa Brandt Benazzi

Graduada em Letras (UCS/1996); Tecnóloga em Optometria (ULBRA/2003); especialista Saúde Coletiva (FSG/2004) e mestre em Saúde Coletiva (ULBRA/2007). Compõe o quadro docente da ULBRA desde 2002 ministrando disciplinas de Optometria, Epidemiologia, Saúde Coletiva e Saúde Ocupacional (Ergonomia visual), professora convidada da Verbo Educacional (Pós-graduação áreas da Saúde e Segurança do Trabalho).

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