03/03/2008
A doença é uma das causas mais freqüentes de cegueira na infância, representando 20% dos casos. Diagnóstico e tratamento precoces são fundamentais para evitar a perda irreversível da visão
Historicamente, o aumento do globo ocular em recém-nascidos tem sido observado desde os relatos de Hipócrates, mas a relação entre a buftalmia e a pressão intra-ocular elevada foi estabelecida somente em meados do século XIX. No princípio do século XX, estudos patológicos realizados em olhos com buftalmia vieram demonstrar que existiam determinadas alterações na região do ângulo da câmara anterior e que possivelmente tais alterações estivessem relacionadas ao aumento da pressão intra-ocular (DUKE ELDER, 1969).
Essas características peculiares observadas em olhos buftálmicos passaram a ser denominadas anomalias congênitas do ângulo da câmara anterior, e a relação com o aumento da pressão intra-ocular ficou estabelecida. Logo em seguida, a idéia de uma solução cirúrgica surgiu precariamente. A goniotomia e a trabeculotomia se estabeleceram como tratamento e permanecem até hoje como primeira indicação terapêutica para o glaucoma congênito.
A correta gonioscopia é fundamental na observação das alterações congênitas da câmara anterior e seu ângulo. As alterações devem ser detalhadamente descritas para um diagnóstico exato.
O termo glaucoma infantil ainda tem sido usado em alguns casos. Muitas vezes é considerado sinônimo de glaucoma congênito; em outras, é aplicado para qualquer tipo de glaucoma, desde que venha a ocorrer durante os primeiros anos de vida.
O termo glaucoma do desenvolvimento é genericamente mais abrangente e é considerado por alguns autores até como sinônimo de glaucoma congênito. Especificamente, o termo glaucoma congênito primário refere-se somente a olhos com alterações na malha trabecular (trabeculodisgenesia), sem outras anomalias ou doenças oculares (DICKENS & HOSKINS, 1989).
Atualmente, o termo glaucoma do desenvolvimento está mais bem definido, fazendo referência aos glaucomas associados com anomalias presentes no nascimento, abrangendo aqui o glaucoma congênito primário e o glaucoma associado a outras anomalias do desenvolvimento, oculares ou sistêmicas (HOSKINS, 1981).
Com estudos futuros mais profundos e detalhados, baseados principalmente em embriologia, biologia celular e genética, seremos capazes de definir mais precisamente os glaucomas do desenvolvimento. Estudos histológicos, em que o uso da microscopia eletrônica nos fornece detalhes superiores aos da observação gonioscópica, nos levam a uma evolução no processo de classificação dos glaucomas congênitos, pois sabemos que tradicionalmente a classificação vem sendo feita por epônimos e nomes sindrômicos, embora muitos desses termos continuem a ser empregados e reconhecidos.
HOSKINS, SHAFFER, HETHERINGTON (1984) editam uma classificação anatômica dos glaucomas do desenvolvimento, onde as alterações anatômicas oculares são identificadas e servem como base para a classificação de todos os tipos de glaucomas da infância. A característica fundamental dos glaucomas do desenvolvimento é a má-formação do segmento ocular anterior. A goniodisgenesia presente pode envolver uma ou mais das três estruturas que compõem o ângulo da câmara anterior, aqui citadas: a malha trabecular, a íris e a córnea. A extensão da má-formação é indicada pela presença ou ausência, proporcionalmente, de trabeculodisgenesia, iridodisgenesia e corneodisgenesia, com as alterações ocorrendo em combinações variadas, que determinarão a significância ou não da terapêutica a ser aplicada e o prognóstico final. O defeito clássico característico do glaucoma congênito primário é somente a trabeculodisgenesia, que pode se apresentar de duas formas características. Na forma mais comum, a íris insere-se no trabeculado, anteriormente ao esporão escleral. A superfície da malha trabecular apresenta-se visível, com aspecto poroso, e o mesoderma superficial da periferia da íris apresenta-se com aspecto afinado. Na segunda forma de trabeculodisgenesia isolada, a íris apresenta-se inserida posteriormente ao esporão escleral, continuando o estroma iriano apondo-se ao esporão, malha trabecular e até impedindo a observação gonioscópica da linha de Schwalbe.
Iridotrabeculodisgenesia e corneotrabeculodisgenesia são alterações que podem estar presentes em casos de glaucomas do desenvolvimento, servindo aqui como diagnóstico diferencial para casos de glaucoma congênito primário.
Após a criteriosa observação anatômica das estruturas da câmara anterior, em que fica evidente que o glaucoma primário se caracteriza por essa série de alterações que comprometem o sistema de drenagem do humor aquoso, estabelece-se uma ligação direta entre tais alterações e o aumento da pressão intra-ocular. Os danos estruturais subseqüentes ao globo ocular e o intenso comprometimento da acuidade visual podem em casos severos caminhar para a perda total da visão.
A preocupação com o diagnóstico e o tratamento mais precoce possível torna-se essencial para evitarmos o mal maior, que é a perda irreversível da visão, pois o glaucoma congênito é uma das causas mais freqüentes de cegueira na infância, representando cerca de 20% do total dos casos de cegueira. Geneticamente, na maioria dos casos a ocorrência é esporádica, mas em aproximadamente 10% dos casos, onde o padrão hereditário é evidente, a herança, acredita-se, é autossômica recessiva.
No entanto, vários geneticistas afirmam que há diferentes índices de penetrância em diferentes famílias com grandes variações. Quanto mais baixa a penetrância, menor é a probabilidade de ocorrer a doença em recém-nascidos da mesma família.
O padrão de herança ainda é questionável, acreditando-se ser do tipo poligênica (JAY, PHIL, RICE, 1978; GUERRA, 1991). Estudos atuais em genética caminham em ritmo acelerado para a identificação de genes responsáveis por tão sérias alterações oculares.
A conseqüência clínica do aumento da pressão intra-ocular em crianças durante os três primeiros anos de vida é o rápido aumento do globo ocular, devido à flacidez das fibras colágenas, principalmente corneanas. O diâmetro corneano normal de 10,0 a 10,5 mm pode atingir até 16 mm. Com o aumento do diâmetro corneano, a membrana de Descemet e o endotélio da córnea podem sofrer rupturas, que são denominadas estrias de Haab. Esses danos iniciais podem evoluir para edema do estroma e do epitélio corneano, com conseqüente opacidade corneana difusa. Com o aumento total do globo ocular, o estroma superficial da íris apresenta aspecto mais fino. O anel escleral, que permite a passagem do nervo óptico, sofre conseqüente aumento no diâmetro, evidenciando no exame de fundo de olho um aumento no diâmetro do disco óptico, mesmo sem perda de fibras nervosas do nervo óptico (QUIGLEY, 1982; CARVALHO, 1985).
Devido à grande elasticidade das fibras colágenas que compõem o globo ocular até o terceiro ano de vida, grandes aumentos da escavação do disco óptico podem apresentar regressão total, em resposta a tratamento cirúrgico que normalize a pressão intra-ocular. A ecobiometria ocular é excelente método propedêutico e de grande valor para o acompanhamento do glaucoma congênito primário, através da medida do diâmetro axial do globo ocular (SAMPAOLESI, 1990; BETINJANI & CARVALHO, 1994).
Biomicroscopia do segmento anterior e angular (gonioscopia), avaliação o mais detalhada possível do disco óptico, medidas do diâmetro corneano e biometria ultra-sônica são fundamentais para diagnóstico, acompanhamento e conduta a ser tomada.
Tratamento cirúrgico.
Goniotomia, que tem uma abordagem interna, funciona por separação das estruturas que estão sobre a malha trabecular, e trabeculotomia, que tem uma abordagem externa, funcionando por abertura e separação desde as estruturas normais que formam o seio camerular até atingir o material sobre a malha trabecular, são os procedimentos de escolha como primeira opção. Ambos os procedimentos cirúrgicos visam a permitir o fluxo normal de drenagem do humor aquoso, normalizando a pressão intra-ocular na grande maioria das vezes. Outras técnicas cirúrgicas, como trabeculectomia e implante de dispositivos artificiais de drenagem, podem ser utilizadas, geralmente após falha de um dos procedimentos clássicos citados.
Estudos histopatológicos sob microscopia eletrônica descrevem o desenvolvimento das estruturas do seio camerular em olhos normais e em olhos com trabeculodisgenesia, afirmando que em olhos com glaucoma congênito primário a íris e o corpo ciliar assemelham-se a um olho entre seis e sete meses de gestação.
Anomalias histológicas foram encontradas no exame da malha trabecular, com espessamento característico das estruturas da malha, causando compressão e diminuição dos espaços intertrabeculares. O canal de Schlemm apresenta-se aberto em casos iniciais de glaucoma congênito primário, podendo estar obliterado em casos avançados, devido às alterações secundárias ao efeito da elevação da pressão intra-ocular. A ocorrência de espessamento do tecido conectivo justacanalicular também foi observada, assemelhando-se ao depósito de material amorfo na área subendotelial da parede interna do canal de Schlemm (MAUL, 1980; TAWARA & INOMATA, 1981). Os estudos histopatológicos referidos permitiram demonstrar que realmente há dificuldade no processo de drenagem do humor aquoso da câmara anterior. No entanto, o conhecimento da relação entre o nível da pressão intra-ocular e as velocidades de formação e drenagem do humor aquoso despertou o interesse em se estudar a dinâmica de formação e o conteúdo do humor aquoso.
Sabemos que o humor aquoso está quimicamente composto por 99,69% de água e o restante de substâncias orgânicas e inorgânicas. As proteínas apresentam-se em concentrações muito baixas quando comparadas ao plasma.
Segundo BRUBAKER (1991), a formação do humor aquoso envolve três processos que ocorrem em série: o fluxo sangüíneo arterial dos processos ciliares, a filtração através das fenestrações capilares para o espaço intersticial entre os vasos e o epitélio ciliar, e a secreção pelo epitélio ciliar para a câmara posterior. Esse processo secretório dependente de energia é realizado pelas células do epitélio não pavimentado do corpo ciliar.
Presentes no humor aquoso, as proteínas se originam de um filtrado plasmático e não de síntese durante o processo de produção, sendo que a diferença na concentração especificamente das proteínas e outras moléculas de alto peso molecular, entre humor aquoso e o sangue, indica que existe uma barreira hematoaquosa que determina velocidade relativamente baixa de penetração do lado sangüíneo para o lado aquoso dos processos ciliares (WEINREB, 1991). Provavelmente, como muitas funções durante os primeiros meses após o nascimento, o corpo ciliar não produz humor aquoso em sua capacidade máxima, podendo explicar por que muitos casos de glaucoma congênito primário apresentam piora do quadro clínico entre o primeiro e o quinto mês de vida, quando o corpo ciliar começa a produzir o humor aquoso em sua plenitude. Por ser um ultrafiltrado plasmático, a composição química do humor aquoso é determinada e encontra-se diretamente relacionada com as características físicas da barreira hematoaquosa e também por atores hemodinâmicos que influem sobre o conteúdo do filtrado estromático ciliar, do qual se originará o humor aquoso. O conteúdo protéico do humor aquoso foi investigado por seu possível envolvimento no processo de aumento da pressão intra-ocular, assim como por sua possível utilidade na avaliação da integridade da barreira hematoaquosa.
Estudos eletroforéticos do humor aquoso e do plasma humano relatam que a única diferença na concentração protéica entre os dois fluidos é a concentração por volume estudado. Já as proteínas presentes no humor aquoso são totalmente originadas do plasma. Os relatos da literatura sobre a constituição protéica do humor aquoso referem, para grupo de estudo de controle, pacientes portadores de catarata senil. Nestes, o humor aquoso obtido em pré-operatório imediato forneceria amostras mais fidedignas, visto que tal moléstia não interferiria no conteúdo protéico desse fluido.
O estudo das proteínas do humor aquoso tem se mostrado importante na investigação de fatores quimiotáteis intra-oculares (JOSEPH 1987), de fatores de crescimento e enzimáticos (TRIPATHI 1994), nas alterações das concentrações das imunoglobulinas secundárias a uveíte (ABREU1989) e também por sua possível utilidade na avaliação da integridade da barreira hematoaquosa (JOHNSON 1986).
Em relação ao conteúdo protéico do humor aquoso em pacientes portadores de glaucoma do adulto, estudos de LEE et al. (1990); ALMEIDA (1991) e COHEN (1994) demonstram quantitativamente e qualitativamente a presença de proteínas que poderiam participar no processo etiopatogênico do glaucoma.
Em estudo sobre o conteúdo protéico do humor aquoso em pacientes com glaucoma congênito primário, comparando com pacientes portadores de catarata congênita, sendo o humor aquoso colhido no pré-operatório imediato, Amorim, W (1995) analisou quantitativa e qualitativamente o conteúdo protéico do humor aquoso por eletroforese, em gel de poliacrilamida, e observou a média da concentração total de 74,80 mg% em glaucoma congênito contra 27,63 mg% em catarata congênita. A albumina 67KD foi encontrada em todas as amostras estudadas, havendo maior tendência da presença de proteínas de mais alto peso molecular em humor aquoso de glaucoma congênito. Devido a alguns fatores como alta concentração protéica, presença de proteínas de alto peso molecular, impossibilidade de coleta de humor aquoso em crianças com evidentes alterações congênitas do trabeculado e pressão intra-ocular normal, não podemos relacionar concentração protéica e pressão intra-ocular. Estudos histológicos e funcionais das estruturas que compõem a barreira hematoaquosa em olhos com glaucoma congênito primário poderiam esclarecer se há defeito primário na síntese do humor aquoso (ciclodisgenesia) ou se o aumento da pressão intra-ocular, secundário a trabeculodisgenesia, leva à quebra da barreira hematoaquosa e aumenta o conteúdo protéico. A literatura carece de novos estudos que possam vir esclarecer as alterações aqui referidas.
Fonte: Universo Visual
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