Uma análise histórica das dificuldades no processo de reintegração social

Trajetória histórica da Saúde Mental no Brasil
Trajetória histórica da Saúde Mental no Brasil

Enfermagem

14/10/2014

REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DAS DIFICULDADES NO PROCESSO DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL



Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo revisar a trajetória histórica da Saúde Mental no Brasil, permitindo que sejam identificados os obstáculos da implantação de um sistema aberto ou ambulatorial que vise a reinserção do indivíduo portador de transtornos mentais. Esta análise sociopolítico-econômica tem como objetivo demonstrar a omissão histórica em relação ao doente mental e as intenções do setor público em mudar o quadro atual, bem como por fim identificar os fatores que dificultam o processo de abertura do sistema de atendimento psiquiátrico.


INTRODUÇÃO


Inicialmente devemos explanar sobre os primórdios do entendimento, atendimento e o olhar da sociedade acerca da Saúde Mental para que seja possível por fim entender as dificuldades na transição de um sistema hospitalocêntrico para um sistema ambulatorial preocupado com a sociabilização do doente mental.


Para entender melhor os conceitos, um sistema hospitalocêntrico baseia-se na internação e exclusão do indivíduo portador de transtornos mentais que pode ou não passar por tratamento, dado cada momento histórico, enquanto no sistema aberto ou ambulatorial o paciente é reinserido na sociedade e com o auxílio de programas tenta quebrar os estigmas ancestrais buscando demonstrar que o mesmo pode ser um cidadão ativo e respeitado, podendo haver ou não a internação do mesmo.


Traçados os conceitos básicos, de diferenciação de cada sistema de atendimento, podemos transitar pelos fatos históricos para que assim haja a possibilidade da construção de um breve entendimento das bases que sustentam o pensamento crítico sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil e, por fim, poder entender as dificuldades do processo de atendimento psiquiátrico.


UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A PSIQUIATRIA

A trajetória da saúde mental inicia-se, ou documenta-se sua existência, desde 495 a.C., num processo onde o doente mental era visto como um indivíduo atormentado por demônios, espíritos ou afins e seu processo de cura era realizado por um padre, xamã ou pajé por meio de orações, plantas e magia.


Com o advento do pensamento filosófico sobre a sociedade este olhar se volta para seu comportamento, dada esta preocupação, verificou-se, de forma analítica e estruturada, os comportamentos destoantes do “normal”, desde então a intenção em descobrir os fatores “reais” e possíveis tratamentos desses comportamentos virando assim uma preocupação continua.

Porém o manejo desses indivíduos acometidos por estas patologias ainda era um sistema excludente e cruel, onde os pacientes eram retirados do convívio social, muitas vezes trancados com criminosos, devido ao fato de não haver distinção entre doente mental, assassinos, ladrões, todos eram classificados como desordeiros, e este cenário permitiu que os doentes fossem classificados como tal, fato que perdurou por muitos anos no cenário da Psiquiatria.


Mas aproximadamente 1.300 anos depois, em meados dos anos 1.800, somente, que foram colocadas em prática as preocupações sobre a qualidade das acomodações, tratamento e convívio social do paciente graças ao Dr. Phillipe Pinel, que a frente da direção de dois hospitais psiquiátricos, iniciou o processo de reforma e acaba por difundir seus conceitos mundialmente, é neste contexto, em meio a Revolução Francesa (no plano Político), Revolução Industrial (no plano Econômico) e Reforma Sanitária (no plano Social), que o Brasil está quando se faz necessário o manejo dos pacientes, até então “invisíveis” aos olhos da sociedade e política.


Os primeiros hospitais psiquiátricos no Brasil datam de meados de 1.800 e sua função inicial era encarcerar os doentes mentais e retirá-los totalmente do convívio social, com o advento da reforma Sanitária, inúmeros manicômios foram forçados a mudar as condições em que estes doentes se encontravam, estes que viviam na escuridão, atrás de grades, em meio a dejetos deles e de outros e ainda era comum vê-los dividindo celas com criminosos. Inicia-se assim o processo de reforma Psiquiátrica no Brasil, mesmo mantendo-se ainda um sistema hospitalar, vê-se uma preocupação na melhora das condições e segregação institucional entre doentes mentais e criminosos.


Porem somente no século XX que se inicia o processo de deshospitalização e ressocialização dos doentes mentais, entre as décadas de 20 e 30, Juliano Moreira e Ulisses Pernambucano lançam o primeiro esforço em prol da criação de um sistema aberto de atendimento ao paciente psiquiátrico, que institui um sistema de pensão aberta, com ensino e atendimento voltado para os doentes mentais. Mas o sistema não possuía bases sólidas e devido à falta de medicamentos específicos e a visão da sociedade sobre o assunto, que envolvia até então, muitos tabus, não permitiu a ascensão do serviço como deveria.


Com a descoberta das drogas antidepressivas e neurolépticas, na década de 40, inicia-se uma revolução psicofarmacológica, onde era evidente a divisão da assistência que era patrocinada pelo Estado e pela Previdência, o plano de assistência público direto (Estado) era baseado na deshospitalização do paciente visando a reintegração social e o plano de assistência previdenciário que visava a internação por ser mais lucrativa que o atendimento ambulatorial, o doente mental adquire um status de fonte de lucros inesgotáveis.


Mesmo com todas as manifestações existentes em prol do doente mental, a reforma Psiquiátrica somente tomou forma na década de 80, quando passou a configurar-se como movimento autônomo, separado dos demais campos da Saúde, daí em diante a trajetória da atenção ao doente mental sofreu muitas mudanças, como por exemplo, a criação do primeiro CAPS, em 1.987, na cidade de São Paulo, em 1.988 com a reforma da Constituição, cria-se o Sistema Único de Saúde (SUS) e no ano de 1.989, o deputado Paulo Delgado, dá entrada no projeto de Lei, que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios do país.
O Ministério da Saúde inspirado nos movimentos sociais crescentes, em vários estados brasileiros, cria esforços em defesa dos direitos dos paciente e da redução progressiva dos leitos de internação psiquiátricos, além da criação de uma rede de atenção à saúde mental. Ainda na década de 90, foi iniciado o processo de implantação dos serviços de atenção diária, baseados nas experiências adquiridas na fundação dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia.


Mas é somente 12 anos depois, no ano de 2.001, que o Projeto de Lei de Paulo Delgado torna-se a Lei 10.216, redirecionando a assistência em saúde mental, oferecendo tratamentos na própria comunidade, criando os direitos dos indivíduos portadores de transtornos mentais, mas acaba por deixar na obscuridade o processo de extinção progressiva dos leitos psiquiátricos, ainda assim os esforços continuaram afim de criar condições para que acontecesse o processo de ressocialização e tratamento do doente mental.


Evidenciou-se uma revolução no programa de redução de leitos em hospitais psiquiátricos de pequeno e médio porte que ganhou “fôlego”, a partir do ano de 2.002, após várias normatizações, no mesmo ano é instituído pelo Ministério da Saúde o Programa Nacional de Avaliação Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), tratando-se do primeiro processo avaliativo contínuo dos hospitais psiquiátricos, que avalia o funcionamento, a estrutura física, processos e procedimentos terapêuticos e a atenção as normas gerais do SUS, a criação do Serviço de residência terapêutica acontece nesta mesma época, que são moradias, localizadas no perímetro urbano, onde os portadores de transtornos mentais, egressos ou não dos hospitais psiquiátricos vivem, realizam oficinas e cursos voltados a ressocialização do mesmo à sociedade.


No ano de 2.003 foi criado o “Programa de Volta para Casa”, pela lei 10.708, que tinha como objetivo a desinstitucionalização do indivíduo portador de transtornos mentais, com o pagamento de um auxílio-reabilitação no valor de R$240,00, a justificativa do Programa é que o beneficiário sinta-se estimulado a exercer seus direitos dentro da sociedade, já que o controle sobre o benefício é todo do beneficiário.


Em 2.004 iniciou-se um processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos de grande porte, pacto que vem sendo feito de forma progressiva e estruturada, afim de que não haja escassez de leitos.


Seguido ainda com a diversificação dos CAPS, onde as necessidades são avaliadas por densidade populacional e necessidade social, a criação de Programas de Reinserção Social pelo Trabalho, o programa de atenção especifica à saúde mental e do adolescente, impulsionado pelo advento da ECA na década de 90, porém com implantação no ano de 2.003, o que pôs fim a um descaso secular com relação à saúde mental da criança e do adolescente, a inauguração dos Centros de Convivência e Cultura, também com a criação das políticas de atenção ao usuário de álcool e drogas, em 2.002, que também revelou outra histórica omissão em relação ao uso de substâncias nocivas, como por exemplo, o álcool, droga com alto poder viciante, porem socialmente aceita.


O programa de internação compulsória de usuários de crack, mais recentemente, também pode se encaixar no contexto, bem como a utilização dos usuários de crack como “funcionários” responsáveis pela conservação de ruas e praças em São Paulo, onde os doentes são encaminhados a um centro de referência para tratamento ambulatorial, são acomodados em hotéis reservados para estes e um auxílio no valor de R$15,00 por dia trabalhado, numa jornada de 4 horas, além do uso da equipe do programa de saúde na identificação dos casos de transtornos psiquiátricos nas comunidades.
OS PARADIGMAS ENFRENTADOS NA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Dado todo este contexto sociopolítico cultural, podemos iniciar nossa análise deste recente processo histórico da Saúde Mental no Brasil, digo recente, pois trata-se de uma trajetória de aproximadamente 200 anos, pensando em tempo histórico trata de um curto período de tempo, visto que a história da Saúde mental de forma geral é documentada há, aproximadamente, de 2.500 anos.


Primeiramente não podemos deixar de lembrar-se das origens históricas da atenção à saúde mental, onde o que se via era uma relação de possessão demoníaca ao doente, que criou um sistema excludente e cruel, ressaltando ainda que o fator Religioso estava acima do fator político, o que intensificou as associações das doenças à possessões devido à falta de conhecimento acerca do assunto, podemos identificar um preconceito ancestral às doenças psiquiátricas, que perdura até a atualidade.


Mesmo com os avanços em relação ao pensamento filosófico-científico, o sistema que tentou, e ainda tenta, retirar a taxação criada pela sociedade, de que os doentes eram possuídos por demônios tentando demonstrar que os mesmos sofriam de males de origem fisiológica, tem falhado devido à grande influência religiosa na sociedade antiga e moderna, pela falta de materiais informativos sobre as patologias encontradas e ainda pelo falta de cientificidade do campo de saúde mental, atualmente ainda é vista uma inflamada discussão sobre o assunto na sociedade, universidades, comunidades científicas e entre outros para que seja conferido à cadeira de Psiquiatria seu devido respeito.


Podemos ver que o preconceito construído ao longo dos anos atinge diferentes grupos, como por exemplo, a família que vê o doente como um “fardo”, os profissionais mal preparados que se utilizam de procedimentos cruéis no trato do paciente, da sociedade que não é informada ou não procura informar-se sobre tais transtornos, criando uma visão deturpada do doente, dos empresários que veem nos pacientes fontes de lucro com internações e medicamentos, nos próprios doentes que não aderem ou aderem parcialmente ao tratamento, dificultando no processo de reintegração social, na existência de um sistema excludente velado que utiliza-se do encarceramento e crueldade no trato do paciente e uma sociedade preconceituosa que continua a manter uma visão de incapacidade dos doentes, excluindo-os do mercado de trabalho, convívio e entre outros.


Vemos também nos manifestos sociais, comunitários, políticos e laborais (profissionais relacionados aos cuidados dos indivíduos portadores de transtornos mentais) a falta de coletividade por parte desses vários grupos segregados devido as suas diferentes reinvindicações, e esta pluralidade dos manifestos dificultou, e ainda dificulta, o processo de Reforma.


Existe ainda uma necessidade crescente de informar a população, a fim de elucidar estes preconceitos existentes e também desmistificar os tabus criados em relação aos doentes mentais, devido este histórico sistema encarcerativo de doentes, os conhecimentos sobre o assunto mantiveram-se na obscuridade e trazê-los a luz da sociedade é o primeiro fator a se pensar neste processo de consolidação da reforma psiquiátrica no Brasil, além de denunciar os empresários ligados a Farmacêuticas que exploram o sofrimento do doente com medicamentos de alto custo ou ineficazes no tratamento, os empresários ligados aos Hospitais que lucram com as internações de longa duração dos pacientes sem necessidade e por fim os empresários ligados ao Tabaco e Álcool que “enganam” a sociedade com produtos com alto poder viciante e causadores de morte que podem ser consumidos de forma livre.


Outro ponto de discussão neste processo são os Manicômios Judiciários, criados através do decreto nº 14.831 do ano de 1.921, e que são geridas pelo Departamento Nacional de Assistência Pública, conforme o decreto nº 20.155 de 1.931 e, portanto não estão submetidos às normas do Ministério da Saúde, estima-se que existam 19 dessas instituições que abrigam, em torno de, 4.000 cidadãos, sendo frequentes as denúncias de maus tratos e óbitos em decorrência deste motivo. A caracterização do nível de periculosidade é baseado no código penal de 1.940, onde o doente poderá ser avaliado por um perito forense que determinará o encaminhamento do mesmo à uma internação penal.
CONCLUSÃO

Este conjunto de fatores históricos e culturais relacionados aos doentes mentais demonstra a fragilidade do movimento, bem como um universo oposto, cheio de preconceitos, mesmo que estes necessitem estar envolvidos direta ou indiretamente a um destes programas. Trata-se de uma batalha em prol de um grupo de indivíduos que carregam um estigma histórico em si, mesmo que o pensamento e o entendimento tenham evoluído são poucos, ainda, os adeptos dessa batalha contra uma bagagem histórica de 2.500 anos de estigmas, crueldades e desinformações que perduram até os dias atuais. Conclui-se ainda que existem esforços concretos na luta contra este sistema voltado para a exclusão dos cidadãos portadores de transtornos mentais, porém, para que existam as vitórias, se faz necessário uma reestruturação dos movimentos criando uma voz singular nas reinvindicações, além de um consenso no campo científico com o intuito de conferir o devido respeito ao estudo da Saúde Mental.



AGRADECIMENTOS


Primeiramente gostaria de agradecer a minha esposa que está ao meu lado nessa batalha da vida, a minha mãe que possibilitou tudo isso de várias maneiras e a minha família que tem sido a base de cada passo que dou.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CUNHA SOARES JR., Renan da. Saúde Mental: História e Legislação em Saúde Mental, 2.014.


MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em Saúde Mental 1.990 – 2.004. Brasília-DF: Editora MS, 2.004.


MINISTÉRIO DA SAÚDE. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil: Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília-DF: Editora MS, 2.005.


WIKIPEDIA. História da Psiquiatria. 2.013 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_psiquiatria . Acessado em 17 de fevereiro de 2.014.

Esta apresentação reflete a opinião pessoal do autor sobre o tema, podendo não refletir a posição oficial do Portal Educação.


Mario de Felicis Sobrinho

por Mario de Felicis Sobrinho

Formado há 8 anos, empregado há aproximadamente 6 anos pela Pref. Mun. de Barueri como enfermeiro assistencial, destes 6 anos, dedico-me atualmente à liderança da equipe de enfermagem do plantão no Pronto Socorro, formado em três pós graduações, Urgência e Emergência e Saúde Mental e Gestão em Enfermagem com a finalidade de complementar meus saberes acerca do ser humano.

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