01/01/2008
As síndromes mielodisplásicas (SMD) são distúrbios originados na célula-tronco da medula óssea (MO) e são reconhecidas como pertencentes às doenças mieloproliferativas (DMP), muitas vezes fazendo interface com os pólos "agudo" (mais proliferativo, menos acumulativo, como as leucemias mielóides agudas – LMA) e "crônico" (mais acumulativo, menos proliferativo, como as doenças mieloproliferativas crônicas – DMPC) destas doenças.1,2,3
Estes distúrbios fazem, freqüentemente, interfaces e sobreposições com as DMP, embora com achados de displasia na sua manifestação inicial, o que compõe e resulta em quadro bastante heterogêneo tanto de manifestações clínicas como laboratoriais-citomorfológicas. Entretanto, sempre apresentam algum grau de evidência de insuficiência (numérica e/ou funcional) da produção da MO.
Assim, o objetivo principal deste relato é estabelecer os critérios morfológicos como parâmetros para o diagnóstico de SMD, no que se refere aos esfregaços de sangue periférico (SP), citologia de MO (mielograma) e histologia de MO (biópsia), com especial interesse aos que exercem hematologia laboratorial na sua rotina de trabalho.
O plano geral para diagnóstico morfológico das SMD deve contemplar, em quadro clínico suspeito e/ou achado laboratorial:
• avaliação de hemograma completo (sangue periférico-SP).
• avaliação de medula óssea (MO) em citologia (esfregaço – mielograma e/ou imprint) e histologia (biópsia por trepanação).
Associam-se a estes: avaliação citogenética, citometria de fluxo e bioquímica sangüínea para confirmação diagnóstica, classificação morfológica e estratificação terapêutica.
Em SMD, como as alterações morfológicas podem ser sutis e, muitas vezes, subjetivas, há que se considerar que nada substitui a prática. É fundamental avaliar e reavaliar o(s) material(is) e manter rigor nesta avaliação.
Há que se considerar, como pontos fundamentais:
• prática em analisar lâmina de sangue periférico (hemograma) ; esfregaço (mielograma) e/ou imprint, e biópsia de MO, em colorações de rotina.
• o material para avaliação morfológica tem que ser representativo e de coloração razoável, ou seja, de qualidade técnica mínima que possa sustentar um diagnóstico baseado em critérios que, em última instância, apóiam-se nesta qualidade.
• reconhecer atipia em citologia igual a perda da uniformidade das células, individualmente, em relação à sua contrapartida normal.
• reconhecer atipia em histologia igual a perda da orientação arquitetural do setor hematopoético em relação à sua contrapartida normal.
• atipia igual a alteração para mais ou igual a 10% das células da linhagem considerada.
• nenhum achado morfológico único é diagnóstico de SMD. Conta-se, para isso, com avaliações subjetivas e objetivas de clínica, morfologia, citogenética, citometria de fluxo e exclusão de outras patologias para se concluir por SMD.
• semanas ou meses de acompanhamento clínico-laboratorial podem ser necessários para se firmar o diagnóstico definitivo de SMD.
Em relação às alterações hematológicas periféricas, devemos considerar a qualidade e coloração do esfregaço. Sugerimos que sejam usadas as colorações que já são habituais e de grande familiaridade, mas que exibam claramente as granulações em leucócitos, quando estas existirem; esfregaço fino, corado em Romanowsky (Leishman ou Giemsa).
Considerar os achados abaixo listados, mas não necessariamente a ocorrência de todos eles, a saber:4,5
Citopenia(s) sustentada(s) por 4 - 8 semanas, com:
• anemia, hemoglobina abaixo de 11 g/dl.
• neutropenia abaixo de 1500/mm3.
• plaquetopenia abaixo de 100.000/mm3.
• monocitose acima de 1000/mm3.
• reticulocitopenia (com ocasional policromasia).
VCM acima de 100 fl
Alterações da série eritróide:
• dimorfismo (dupla população).
• macrocitose ovalocítica.
• anisocromia, policromasia.
• poiquilocitose.
• pontiados basófilos.
• com ou sem eritroblastos.
• com ou sem dacriócitos.
Alterações dos granulócitos:
• hipogranulação e hipossegmentação (formas pelgeróides).
• disgranulação (grosseiras e mal distribuídas).
• fragmentação da cromatina.
• donut cell (célula em rosca).
• mieloblastos tipos I – II – III (*descritos a seguir).
Alterações dos monócitos
• promonócitos.
• vacuolizações.
• formas grandes e/ou bizarras.
Alterações da série megacariocítica:
• megaplaquetas.
• formas hipogranulares.
• plaquetose (na síndrome 5q-).
Em relação às alterações da MO na citologia geral, 4,5 devemos considerar a presença de atipias acima ou igual a 10% da linhagem em questão:
• esfregaço fino e representativo, com espículas e trilhas.
• coloração Romanowsky (Leishman ou Giemsa).
• coloração azul da Prússia (Perls).
• celularidade geral:
corrigida para a idade e local da punção.
contagem de relação grânulo-eritroblástica (RGE) em 500 células.
espículas ricas versus espículas estromais.
estabelecer a porcentagem entre parênquima e adipócitos (% adipócitos versus % tecido medular na amostra total) e considerar, pela alta faixa etária prevalente em SMD (exceto nas formas pediátricas), se :
- hipoplasia – tecido/gordura abaixo de 1/3 (menos de 30% de tecido medular).
- normal – 1/3 abaixo do tecido/gordura menor que 1/1 (tecido medular entre 30%- 50%).
– hiperplasia – tecido/gordura maior que 1/1 (tecido medular mais que 50%).
conferir a celularidade pela histologia, pela maior fidelidade fornecida pela biópsia.
Em relação à série eritróide da MO (Figura 1), devemos considerar a presença de atipias para mais ou igual a 10% da linhagem em questão:
• retardo maturativo.
• assincronismo maturativo entre núcleo-citoplasma.
• formas megaloblastóides (núcleo em "fatia de salame").
• mitoses anômalas (despolarizadas).
• multinuclearidade.
• apoptose (cariorrexis).
• falhas de hemoglobinização.
• vacuolização citoplasmática.
• pontes internucleares, fragmentos nucleares.
• formas bizarras, atípicas, aberrantes (PAS Å).
• sideroblastos anelares acima de 15% dos eritroblastos (maior ou igual a 5 grânulos ou 1/3 da circunferência do eritroblasto).
• pode ser hipoplásica, normoplásica, hiperplásica.
• contagem de sideroblastos = contagem em 300 eritroblastos totais.
Recomendamos também observar os seguintes detalhes:
• se hiperplasia eritróide acima de 50% da celularidade: contar mieloblastos na população não-eritróide.
• se hipoplasia eritróide, avaliar formas imaturas atípicas tipo M6.
• avaliar criteriosamente hemograma (SP) em relação à diseritropoese para se diferenciar de aplasia de MO.
• excluir todas as outras possíveis causas de anemia com diseritropoese.
Na série granulocítica de MO (Figura 2), devemos considerar a presença de atipias para mais ou igual a 10% da linhagem em questão:
• setor hiperplásico (em geral).
• retardo maturativo.
• assincronismo maturativo entre núcleo-citoplasma.
• alterações megaloblastóides (alteração de Tempka-Braün).
• disgranulações (hipogranularidade e/ou distribuição heterogênea).
• formas pelgeróides (hiposegmentação, hipogranulação).
• donut cells (células em rosca).
• fragmentos nucleares.
• formas imaturas bizarras, atípicas, aberrantes.
• mieloblastos tipos I, II, III.
• com ou sem bastonete ou corpo de Auer.
• blastos com citoplasma granulocítico e núcleo monocitóide.
• com ou sem eosinofilia, mas com granulações grosseiras e displásicas.
• colorações citoquímicas auxiliares (Sudan-Black, mieloperoxidase - MPOx ).
• contagem de blastos – se eritroblastos abaixo de 50% ou igual a porcentagem de blastos entre 200 células viáveis totais; se eritroblastos acima de 50% ou igual a porcentagem de blastos entre 200 células não-eritróides.
Nos mieloblastos tipos I, II ou III,6 devemos observar (Figura 3):
• podem coexistir no mesmo paciente e na mesma amostra.
• contagem de blastos em mínimo de 200 células da celularidade total, exceto quando a série eritróide for > 50% da celularidade da amostra.
• blastos tipo I: são menores, alta relação núcleo-citoplasmática (RNC), cromatina reticulada, fina, não-condensada, 1-3 nucléolos, citoplasma diáfano, basofilia discreta, sem grânulos, sem Auer.
• blastos tipo II: em geral maiores que o I, mas de menor RNC, discreta granulação primária (azurófila), cromatina mais condensada, 1-3 nucléolos notórios, Golgi proeminente.
• blastos tipo III: são semelhantes aos do tipo II, mas com granulação azurófila mais abundante (> 20 grânulos), sem granulação secundária (metacromática) e sem zona de Golgi.
Nos monócitos (Figura 4) devemos considerar a presença de atipias para mais ou igual a 10% da linhagem:
• em geral, formas monocitóides são mais facilmente observadas em SP do que na MO, no mesmo momento evolutivo.
• considerar formas "mistas", com citoplasma granular e núcleo monocitóide (antigamente chamadas de células paramielóides).
• formas imaturas "promonócitos".
• vacuolizações.
• atipias, formas aberrantes.
• colorações citoquímicas auxiliares: esterase não-específica.
Na série megacariocítica da MO (Figuras 5 e 6), devemos considerar a presença de atipias para mais ou igual a 10% da linhagem em questão. Existem quatro (4) tipos de atipias, a saber:
• núcleos fragmentados (hipersegmentados).
• bilobados.
• monoformas grandes ou pequenas.
• microformas (igual a 2 vezes o tamanho do neutrófilo = 20-30 mm).
A contagem deve ser realizada em pelo menos 10 megacariócitos. Ocasionalmente há intensa hipoplasia deste setor e não são vistos megacariócitos em número de 10 ou mais. Mesmo assim, avalia-se dispoese nas raras formas existentes e confere-se à histologia, que, em geral, se presta muito a este tipo de esclarecimento.
Devemos diferenciar microformas de megacarioblastos
Em relação às alterações histológicas da MO,7-9 recomendamos os ítens abaixo:
• fragmento de crista ilíaca posterior (ou anterior).
• material representativo acima ou igual a 5 espaços intertrabeculares.
• não considerar área paracortical (fibrose, hipocelularidade, cartilagem, etc).
• colorações de rotina: HE, reticulina, azul da Prússia.
• colorações específicas auxiliares: PAS, fator VIII.
• fundamental na avaliação a celularidade global e setorial (alternância de celularidade); a distribuição da celularidade (hetero ou homogênea), ectopias e atipias, além da presença de focos imaturos (ALIPs), fibrose, ectasia vascular, presença de componente reativo como edema, hemorragia, plasmocitose, etc. (Figura 7).
São mais freqüentes na histopatologia também a hipercelularidade global acima de 80%, exceto em SMD hipoplásica; o retardo maturativo granulocítico central, não para-endosteal (focos imaturos e ALIP).
ALIP são mieloblastos e/ou promielócitos (em número acima ou igual a 5 cels) agrupados ao redor de capilar central (Figura 8).
Presença de retardo maturativo eritróide, focos de proeritroblastos para-endosteais (ectópicos)
Hipoplasia eritróide (comum nos subtipos anemia refratária com excesso de blastos e leucemia mielomonocítica crônica); a hiperplasia é mais comum nas anemias refratárias.
Hipoplasia, normoplasia, hiperplasia megacariocítica são outros dos achados na histopatologia.
Formas anômalas (microformas, monoformas, bilobadas, lobos fragmentados) agrupadas
Alterações megaloblastóides (eritróides e/ou granulocíticas)
Não devemos condundir focos eritróides megaloblásticos com ALIP.
SMD Hiperfibrótica e SMD Hipoplásica
As alterações da MO nas situações anteriormente citadas serão descritas na seqüência.
O subtipo SMD hiperfibrótica só é possível ser diagnosticado pela histologia, consideradas as seguintes orientações:10
• BMO normal: fibras reticulina graus 0 ou I focal (segundo a escala de Bauermeister, descrita abaixo).
• componente de fibrose é comum em SMD (ex: grau II pericapilar).
• SMD hiperfibrótica: fibrose difusa grau III - IV (Figura 9).
• aspirado seco (dry tap).
• pode confundir-se com DMPC (doenças mieloproliferativas crônicas) com fibrose.
• o diagnóstico é feito pela histologia, na coloração de reticulina.
• ocorrem dispoese e fibrose (em SP/ MO), mas sem visceromegalias maciças.
• BMO: hipercelular, com hiperplasiamegacariocítica.
• dismegacariocitopoese.
• proliferação de capilares e ectasia vascular.
• edema, mastócitos, plasmócitos pericapilares.
• hiperfibrose pode ocorrer em qualquer subtipo.
• diferenciar entre mielofibrose idiopática e leucemia mielóide aguda - M7.
As fibras de retículo e colágeno, na MO, formam uma rede delicada que sustenta o estroma. Esta rede circunda vasos, adipócitos, e se aproxima da trabécula; são fibras de colágeno tipo III, normais. Quando há aspiração seca (dry tap), há que se proceder à avaliação pela histologia. Para avaliação da fibrose medular, considerar a escala de Bauermeister:
grau 0 – sem fibra.
grau I – fibras ocasionais e/ou focos finos.
grau II – rede fina em grande parte do corte, sem fibras grossas.
grau III – rede difusa, com focos esparsos de fibras grossas, mas sem colágeno.
grau IV – rede difusa, focos grossos e áreas de colageneização.
Para o subtipo SMD hipoplásica (Figura 10) devem ser consideradas as seguintes orientações:11
• se menor de 60 anos deve ter celularidade acima de 30% da amostra.
• se maior de 60 anos deve ter celularidade acima de 20% da amostra.
• mais comum em SMD pós-quimioterapia e/ou radioterapia.
• mostra-se freqüentemente difícil para se avaliar dispoese em esfregaço/imprint.
• requer maior cuidado em avaliação de sangue periférico.
• citologia de MO: a ocorrência de dispoese grânulo-megacariocítica é um dos principais indicadores de alterações citológicas de MO.
• diseritropoese e/ou apoptose também ocorrem em aplasia MO, não servindo para diferenciar SMD de aplasia MO.
A histologia é mais confiável para avaliação dos desarranjos arquiteturais, dispoese megacarioblástica, aumento das fibras de reticulina, focos imaturos não-megaloblastos. São comuns: mastocitose, principalmente nas espículas e infiltrado linfocitário. Requer cuidadosa pesquisa para contagem de blastos em MO e SP e diferenciar SMD-hipoplásica de aplasia MO e de LMA-hipoplásica.
Recomendamos12-17 que o mielograma apresente representatividade mínima com pelo menos 3 espículas grandes ou 5 pequenas e trilhas ricas. A biópsia deve ter representatividade mínima de 5 espaços intertrabeculares, não ter material paracortical, não estar esmagado, não ter presença de artefato e não ser tangencial.
Se houver atipias em apenas uma linhagem e esta for linhagem granulocítica ou megacariocítica, há possibilidade de se concluir o diagnóstico de SMD, após a exclusão de diagnósticos diferenciais, constatados com quadro clínico.
Citaremos, à guisa de recomendação, os subtipos franco-americano-brasileiro (FAB) e da Organização Mundial de Saúde (OMS),18 que auxiliarão na diretriz morfológica da classificação (Tabela 1).
Consideramos importante para definir o diagnóstico a realização dos seguintes passos na hierarquia e contagem celulares:
• Diagnóstico clínico mais exclusões
• Eritroblastos na medula óssea acima de 50%
• Sideroblastos na medula óssea acima de 15%
• Monócitos no sangue periférico acima ou igual a 1.000/mm3
• Blastos na medula óssea abaixo de 5%, entre 5%-9%, entre 10%-19%
• Blastos no sangue periférico abaixo de 1%, entre 1%-5%, entre 5%-19%
Na seqüência, sugerimos que o check list seja observado com a finalidade de propiciar uma sistematização para o diagnóstico morfológico da SMD.
Fonte: Scielo.br
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